– Quando, na história, foi dito que um ser humano deveria ser o objeto de outro? – comecei. – A vida em Córdia é bela e cheia de fartura para alguns, mas ruim para outros e miserável para os escravos. Desde que nasci, fui ensinado que o trabalho era algo atroz para alguém como eu, os escravos que limpassem o chão, os escravos que carregassem a lenha, os escravos... Estes que não possuem o dom para pensar. A minha vida consistia em ler e observar, pois o suor e o cansaço pertenciam apenas a eles. E, dessa forma, meus queridos ouvintes dessa conturbada noite, pergunto-os: Quem disse que um escravo não pode pensar? Quem, homem ou entidade, ousou dizer que só os aristocratas são detentores da racionalidade, do pensar, do a priori.
Timur não estava nada impressionado, obviamente. As minhas ideias já eram sabidas por ele, assim como pela maioria que se encontrava ali, embora eu nunca as tivesse manifestado, não dessa forma, diretamente nos sujos ouvidos desses porcos aristocratas.
– Um escravo só é escravo porque ele falhou como ser humano – disse Timur. – Se o seu povo perdeu na guerra e ele tem orgulho de sua identidade, a escravidão é o caminho mais honrável perante a derrota e, a morte, o mais deplorável. Com o seu serviço, ele ainda há de comprar sua liberdade e se reerguer se for capaz. No entanto, antes disso, deve pagar pela sua incompetência e a incompetência de seu povo. O escravo das dívidas: esse não soube cuidar de seu patrimônio ou, com os olhos de um corvo, movido pela avareza, atirou uma pedra a fim de acertar uma ave de rapina e bateu na própria cabeça, criando aquilo que ele mesmo não podia quitar, uma derrota como ser humano que, irremediavelmente, deve ser paga. O escravo da família: esse que, mesmo livre, não alcançou a sua autonomia em riquezas e, com muitos filhos gerados, foi obrigado trocá-lo por moedas para que não morresse de fome, o filho de uma pessoa incapaz. Há muitos tipos de escravidão, meu querido Eurípedes, e todas elas se devem a um fato: a derrota. Esses, que perdem, pagam a sua dívida através da escravidão e esculpem a sua alma num propósito maior: a redenção.
– E que redenção seria essa, Timur? Você fala de escravos de guerras. Que culpa tem o filho, que trabalhava fielmente com seu pai para tratar a terra até que, um dia, Cordianos queimaram sua casa, mataram os seus pais e roubaram a sua comida? Fale-me também, Timur, sobre a escravidão de dívidas, em que um mero sapateiro tenta investir em seu mercado para conseguir a sua "autonomia de riquezas", mas entra em dívidas com a própria cidade-estado. Córdia não incentiva os pequenos mercadores. Córdia só os espreme como uma uva gorda e suculenta até a última moeda. E você diz a respeito da escravidão daquele que é vendido pelo próprio pai. Não é você, Timur, filho daquele que já vendera de seu próprio sangue para comprar comida, na antiguidade? Qual a diferença entre você e aquele que morreu enquanto carregava um arado de ferro nas costas diante do frio ardente da segunda noite? A sorte?
Esse meu último comentário fez com que as pessoas da arquibancada mais gritassem do que cochichassem. Muitos sabiam da origem humilde de Timur, mas poucos sabiam que ele era filho de um homem que um dia vendera seus filhos como escravos para a cidade, algo abominável dentro da sociedade e, por mais que Córdia aprovasse, era como cuspir na própria mãe. Não pretendi encerrar o julgamento com isso, mas foi tão prazeroso contemplar a face daquele velho enquanto seu pequeno segredo era exposto para toda a cidade. Foi muito bom, até ele começar a rir.
– Meu querido Eurípedes, vejo que você sabe das raízes da minha família. Pesquisou a meu respeito, meu rapaz? Pois bem, isso não o elucida sobre o bom funcionamento da nossa sociedade? Eu poderia ter sido um escravo, de fato, mas sempre trabalhei muito. Meu pai era mesmo um incompetente e morreu pouco depois de eu completar meus dez anos de idade. Fiquei à margem da escravidão. Nesse período, fui obrigado a fazer muitos trabalhos, mas sempre com os olhos abertos para o que tange a política de Córdia. Foi num momento de coragem que eu, em plena discussão aberta no centro da cidade, subi as escadas para declarar as minhas palavras e, nesse momento, o potencial em mim agradou os olhos da sociedade. O meu caminho só foi possível, pois eu era competente, mesmo numa família degenerada, eu ainda subi. O homem que nasce iluminado pelo sol que há dentro dele, cresce e contribui para a cidade através da política. Eu não falhei, apesar de tudo – completou Timur, enquanto mexia com o seu dedo indicador na ponta de seu dourado brinco.
Um jogo fluído e rápido de palavras sempre corriam pela lábia daquele homem e, por mais que eu o detestasse, havia uma inveja dentro de mim, uma inveja perante toda aquela postura e veloz pensamento, era como se Timur já tivesse visto o meu julgamento de antemão, era como se ele contemplasse o futuro. Mas eu ainda tinha ao que recorrer.
– Diga-me então, Timur, o que há de tão especial na sua existência que se diferencie de um homem que trabalha com grãos e terra.
– Somos todos parte desse cosmos, Eurípedes. A minha existência é como um ponto luminoso nessa fria noite, ela é porque é, e quem não é, não é. O meu espírito tem fulgor para esplandecer, pois ele simplesmente é. Um escravo não, pois ele não é. A existência de um escravo ou escrava é pautada em ser a base da sociedade para que ela flua. O seu trabalho não é desnecessário, mas é medíocre, assim como o seu espírito, logo, ele não é, não naquele instante.
– Então você apresenta uma contraposição, Timur.
– Ah, e qual seria?
– O seu pensamento se baseia ora na capacidade de um indivíduo cair ou não na derrota ora de sua existência ser pré-determinado. Uma vida diante da dicotomia de ser ou não ser, mas uma falsa dicotomia. A existência de um escravo foi determinada por Córdia, não pelo cosmos, como você afirma.
– Aí é que está, Eurípedes – disse Timur ao se levantar. Seu dourado brinco cintilou por um instante e irritou o meu olho. – Não existe contradição, mas ideias complementares. Um pai que entrega o filho em troca comida reflete um derrotado à medida que, esse filho, quando cresce, mesmo dentro da condição de um escravo e se torna um dos maiores nomes da política de uma cidade nos mostra, rigorosamente, que existe um fator fundamental para o destino de um homem: o tempo. A existência pré-determinada nunca foi ou será um objeto constante, pois assim como uma estrela há de morrer e extinguir o seu brilho, outras milhares nascem no universo. Da mesma maneira que um mercador pode ter prejuízos em um mês, ele pode ter lucros num outro. Dessa maneira, a harmonia perdura.
E outra vez ele usou a sua vivência contra mim. A minha língua ficou amarga, eu não deveria ter dito nada sobre o passado de Timur. Eu tinha mais uma ideia para apresentar, mas fui interrompido por alguém que eu não esperava. Hélio se aproximou de mim.
– Eurípedes, você não vai ganhar desse homem – cochichou ele. – E eu acredito saber a razão disso.
– Como é? – indaguei.
– Há algo de errado, Eurípedes. Desde que pisei nessa cidade, eu senti uma pressão diferente do ar, e ela nunca esteve tão forte quanto agora. Acredito que essa sensação venha de Timur. Esse homem... não é normal.
– Do que você está falando?! – gritei. Chamei mais atenção do que deveria. Todo o meu discurso estava sendo rebatido com exatidão por Timur e isso me irritava, mas meu orgulho foi desafiado quando Hélio, esse estranho jovem, abordou-me com essas palavras ridículas e sem fundamento algum! Eu não ganharia? Mas que ultraje!
– Se afaste, Hélio, antes que eu me irrite mais.
Timur voltou a sentar em sua poltrona no alto do palco e me confrontou.
– Há algum problema com seu servo, Eurípedes? – disse Timur ao encarar Hélio.
E foi nesse pequeno fragmento de tempo que tive um arrepio na nuca, seria isso o que Hélio tentou me dizer? Foi como se os espíritos de Timur e Hélio colidissem, como se eles já se conhecessem, era coisa da minha cabeça?
– Nenhum problema, vamos continuar – afirmei, não havia tempo para essas tolices. – Eu gostaria de trazer a frente uma pessoa a fim de tornar o meu ponto válido.
– E quem é essa pessoa que vai falar por você, Eurípedes? – disse Timur.
– Eu não sei, diga-me você, Timur. Você está sempre próximo de vários de seus escravos, por que não traz um deles para cá?
– Você quer um escravo? – respondeu ele com um grave riso que se alastrou pela multidão. Mas eu permaneci firme em minha atitude.
– Escolha qualquer um, Timur, ele me ajudará a contrapor a sua ideia, só me prometa que não o maltratará depois disso.
– Então você está sério com isso. Que seja. Erasto – gritou Timur. – Vá para o centro do palco, você auxiliará Eurípedes no que ele propõe. Seja fiel a sua racionalidade, Erasto.
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O Diário de Eurípedes
FantasiaHá 300 anos o Sol se apagou e a lua tomou o seu lugar. Eurípedes, ávido pelo conhecimento, encontra um indivíduo peculiar, Hélio, conhecido como o guerreiro enferrujado. Juntos, eles partilham de um mesmo objetivo.