Capítulo 1 - Noite

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Frio, solidão, cheiro de mofo. Tudo o que eu poderia sentir naquele momento eram leves sensações de dormência em minhas costas, abrindo os olhos calmamente percebo que é a luz do luar banhando meu rosto, me dando uma estranha impressão de calmaria, que logo seria interrompida com um barulho bem alto de algo se quebrando no andar de baixo

-FILHO DA PUTA!

Uma voz feminina ecoa pelos corredores escuros até meus ouvidos, me fazendo tremer em antecipação pelo que estava por vir.

-Eu aqui me matando de tanto trabalhar, e esse maldito gastando tudo em apostas! Tá achando que eu cago dinheiro seu desgraçado?!

Vestindo minha camiseta lentamente, me levanto da cama, e vou diretamente ao banheiro, meus passos lentos devido a dormência de ter acabado de levantar, enquanto escovava meus dentes podia ouvir o som de mais gritos e coisas sendo jogadas com força no chão.

-É, parece que ela tá bem descontrolada hoje...

Me vejo surpreso ao falar isso tão calmamente, acho que com o tempo você se acostuma.
Me olho no espelho, vendo se ainda tem algo a arrumar antes de sair, reparo apenas em meus cabelos escuros, que não vêem a cor de um pente há anos, nunca saberia responder se isso é pelo fato de eu ter que sair rápido de casa toda noite, ou se é devido e mais pura e simples preguiça, também olhando com atenção para meus próprios olhos, vejo as enormes e teimosas olheiras escuras, que não importa o quanto eu durma, parece que nunca somem de meu rosto, esfrego meus olhos após lavar o rosto e me seco com um pano velho que estava jogado perto da pia. Descendo as escadas, percebo que o barulho parou, estava tão perdido em meus pensamentos que nem lembrava mais o porque deles estarem brigando. Ao chegar na sala de estar, vejo O Homem dormindo em frente a TV, uma garrafa de Vodka na mão, roncando alto. Ignorei sua presença e fui em direção a cozinha, lá estava A Mulher, com as mãos sobre o rosto e debruçada sobre a mesa de jantar, ela me dá um olhar ríspido, eu me apresso e vou até a geladeira, pego um iogurte de morango e caminho o mais rápido possível para a porta da entrada, mas não tão rápido para não parecer desesperado demais, pego minha mochila pendurada no trinco da porta e saio de casa, deixando esse clima pesado para trás.
A noite estava tranquila como sempre, olho no meu relógio de bolso e checo o horário.

-8:15, né?

Fecho e guardo o relógio na minha mochila. A aula começou à 15 minutos, mas não é como se eu estivesse preocupado em chegar no horário, todo dia eu tinha a mesma rotina: Trabalho de manhã em uma lojinha de conveniências, estudo e leio à tarde e finalmente vou à escola de noite, uma rotina estática e imutável, minha existência era simplesmente segui-la sem me questionar muito, meu futuro depende exclusivamente do que eu me especializar no meu período estudantil? Provavelmente não, ou provavelmente sim, dependendo de minhas escolhas.
Tudo o que vejo a minha volta são casas e mais casas, grudadas umas as outras como pequenos apartamentos, a lua emitia um leve brilho avermelhado, e os postes emitiam uma forte luz amarela em contraste, os becos sem saída eram algo comum naquele bairro, gatos de rua dominavam o ambiente noturno e miados ensurdecedores preenchiam meus ouvidos, provavelmente devido a época do cio, eles se reuniam nos becos e iam para lá e para cá, buscando chamar atenção de alguma fêmea disposta.
Quem dera fosse fácil assim para um ser humano conseguir uma parceira, embora eu achasse engraçado imaginar como seria se a humanidade tivesse uma época de cio e os homens fossem obrigados a dançar e gritar para chamar atenção das mulheres. Passando pelo beco, me aproximo do familiar muro quebrado perto do colégio, só que desta vez havia algo lá.. Seus pelos escuros eram suaves e pareciam quase brilhar ao contato da luz noturna, seus olhos escuros se misturavam a escuridão da noite, o felino desvia o olhar rapidamente em minha direção, e nos encaramos por alguns segundos, que pareceram tão longos pensei que fossem horas, durante esse segundo senti apenas um arrepio e instintivamente vou até o animal e lhe faço carinho atrás das orelhas, ele não demonstra medo ou resistência, posso ouvir seu ronronar, me confortando e fazendo toques suaves até o pescoço dele, logo após isso o gato desce o muro e corre em direção a escuridão, desaparecendo de minha vista, posso dizer que essa foi a experiência mais calmante que tive durante os últimos meses de minha vida.

Olho no relógio mais uma vez

-Puta merda, já são 8:30

Me apresso até o colégio, que ficava um quarteirão após o velho muro, que agora passarei a chamar carinhosamente de Muro do Luar, se algum dia eu pude ver aquele gatinho novamente, o chamarei por esse nome, Luar, já que a sensação de estar próximo a ele era tão reconfortante quanto olhar para a lua em uma noite solitária...

Chego cansado até o portão, tiro as correntes do cadeado quebrado e vou em direção à entrada, mais um dia de aula, mais um dia nessa mesma rotina chata e cansativa, me pego pensando se para sempre estarei condenado e viver como um carro em um ferro velho, estacionado no mesmo lugar, deixando a ferrugem do tempo levar minha juventude como se não fosse nada.
Suspirando bem devagar, vou em direção à sala de aula, felizmente a professora não havia chegado, e como sempre, minha presença era completamente ignorada naquele espaço que os adultos gostam de chamar de "Escola" mas eu prefiro chamar de "Instituto de formação de escravos sociais", na minha cabeça o segundo nome era mais realista, sentei em minha carteira dos fundos, evitando ao máximo olhar em qualquer ser vivo que estivesse naquele lugar nojento, pego meu livro que estava lendo na última tarde. "Sun Tzu (A Arte da Guerra). Suas filosofias e visões em um campo de batalha combinavam perfeitamente com o ambiente escolar, e eu sentia que precisaria daquilo para sobreviver.
Estava lendo duas linhas por minuto, minha mente sempre me lembrava daquele gatinho misterioso no muro, minha visão foi ficando turva e durmo sobre a carteira, imaginava como seria ter alguma companhia nessa vida.

Estava lendo duas linhas por minuto, minha mente sempre me lembrava daquele gatinho misterioso no muro, minha visão foi ficando turva e durmo sobre a carteira, imaginava como seria ter alguma companhia nessa vida

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