Minhas memórias estavam todas fora do lugar. Por mais que eu tentasse, minha cabeça parecia querer esquecer de tudo e toda minha vida passava diante dos meus olhos como um filme com muitas partes importantes faltando.
Lembrava de estar lado a lado com Belphegor, meu irmão, num campo aberto cheio de estrelas quando éramos mais jovens. O que ele disse mesmo? Era algo sobre nosso pai. Lembrava de fazer compras em um mercado, de acordar todo dia de manhã bem cedinho, de caçar humanos na cidade em algumas madrugadas.
Lembrava de ir dormir e acordar em um lugar completamente diferente no outro dia, e me forçar a lembrar daquele lugar era doloroso.
-Você pode por favor parar de chorar? - Belphegor falou com uma voz rouca, porque também chorava. Ele se aproximou e tocou meu rosto com ternura.
Eu estava de joelhos no piso frio. Meus braços e pernas, doloridos, estavam presos com algemas pesadas e eu não conseguia fazer um movimento sequer. Em minha boca havia uma mordaça que não me deixava falar, e apenas mexer minha língua ali dentro era difícil, principalmente porque quando acordei não haviam mais dentes ali por algum motivo e a sensação era horrível.
Belphegor era tudo que eu tinha e era a pessoa que eu mais amava naquele mundo, por que estávamos ali? Por que ele me odiava tanto? Nosso pai poderia ser exigente conosco, mas o que levava meu querido irmão a me prender ali e fazer as vontades de Satã sem mais nem menos?
Desde que as coisas ficaram estranhas entre nós, criei uma teoria na minha cabeça.
Satã, nosso pai, queria muito que Belphegor fizesse um experimento horrendo em mim, seja lá por qual raio de motivo que não apenas fazer com que ele me matasse com as próprias mãos. Belphegor negou esse pedido e nosso pai fez alguma coisa com ele, algo terrível que fez com que meu querido irmão nunca mais quisesse olhar pra mim.
Quando me olhava no rosto, ficava com medo e atordoado. Quando me tocava, se afastava rapidamente. Eu amava meu irmão, mas ele não parecia me amar mais. Mas assim que ele decidiu colocar o plano de Satã à prova, eu só sabia urrar, até porque a mordaça não me possibilitava implorar pela minha vida e pela piedade do meu irmão.
Até que um dia inteiro se passou e ele não fez nada de ruim para mim -além de ter arrancado meus dentes, mas isso comigo dormindo e sem sentir nada-, apenas me deixou ali com fome, o que não foi tão ruim. Ele não tinha intenção de me machucar, apenas me fazer ficar sem o delicioso sabor da carne humana.
No segundo dia, Belphegor decidiu sentar ao meu lado e me abraçar. Ele limpava minhas lágrimas, cantava para eu dormir e escovava o meu cabelo. Ele não queria estar fazendo aquele experimento, mas mesmo assim, não conversava comigo e muito menos desfazia aquele rosto sério e melancólico.
No terceiro dia, minha visão parecia estar aguçada demais. Logo pela manhã, quando Belphegor abriu a porta da onde eu estava para vir me fazer carinho, conseguia ver seus fios de cabelo nitidamente, assim como sua pele roxa embaixo dos olhos.
Olheiras? Belphegor nunca acordava sem que eu o acordasse... Quem estava o acordando todos os dias? Ele havia me substituído?
Não. Algo pior havia acontecido.
Nosso pai, Satã, havia começado a aparecer pelo laboratório. Ele me olhava através do vidro que me separava do lado de fora, acenava para mim, sorria, conversava por horas e horas com Belphegor e o acompanhava até em casa na hora de dormir. Satã estava oferecendo ao meu irmão o que ele sempre quis: carinho do nosso pai.
Mesmo que nos odiasse, papai sempre gostou mais de mim. Gostava da minha energia e de como eu tinha talento na caça de humanos, sempre elogiava quando vinha até a Terra e até trazia alguns presentes. Nada disso nunca aconteceu com Belphegor, muito pelo contrário.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Sete Dias
Short StoryO que você seria capaz de fazer para escapar das garras de uma maldição infernal? Seria capaz de sacrificar a vida das pessoas que ama?