A Cura

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Sons de flautim e rufares de tambor cortaram o ar prenunciando uma caçada. A costa litorânea de Yasmin abrigava diversos vilarejos de pescadores e mercadores decadentes e dela surgiam embarcações mercantes em paradas e partidas ocasionais. A praia terminava onde começava a selva e era interrompida ao norte por um paredão de penhascos de uma pedra avermelhada.

Para dentro da mata crescia uma floresta tropical, úmida e quente, com diversificada flora e fauna, muitos espécimes não catalogados por nenhum especialista ou autodidata profundo conhecedor. No ponto mais alto do verão a floresta suava e mesmo à noite o mormaço era pesado para longas viagens e travessias. Considerada uma terra de muitos mistérios, perigos e tesouros sem igual.

Por entre as árvores, vinda da praia, uma guerreira cortou a galope em cima de uma bela égua negra, para dentro da mata fechada. Os longos cabelos negros despontavam de dentro do elmo de couro envernizado. Sua armadura reluzia com pontos brilhante e apresentava muitas rachaduras de onde o sangue vertia.

O vento batia forte e trazia sons vindos do alto, guinchos de dragonetes ainda filhotes, não maiores que dois metros de envergadura e caudas serrilhadas. Apenas circulavam o céu, seguindo a mulher, mas não descendo na mata.

Ela vinha deitada sobre a égua enquanto o rastro de sangue deixava um tapete rubro de folhas e galhos melados. A noite ainda estava clara, com o Sol começando a se pôr ao fundo.

- Vamos Dandara. Vai conseguir, garota! – a moça alisava por baixo da crina, falando em sussurros, mediante a dor.

Dandara já galopava com dificuldade pelo mormaço, a língua denotava muita sede, mas sua vontade era maior do que tudo. Ela ziguezagueava entre galhos e troncos, pisando com dificuldade entre folhas e raízes.

Os tambores pararam e uma nova melodia dos flautins fizeram os dragonetes recuarem, flutuando e deslizando no ar, mais dóceis. Voaram para longe, em direção à praia, até sumirem de vista.

A guerreira respirou mais aliviada olhando para cima e sentindo a noite mais silenciosa agora. Fez Dandara desacelerar quando avistou o lago à sua frente. Deu um sorriso enfraquecido e tocou para que a égua parasse na borda.

Ela desceu com muita dificuldade da montaria, entre gemidos e xingamentos, para deslizar na terra lamacenta que circundava o lago. Começou a retirar a armadura tendo cuidado com as fissuras de couro que penetravam sua carne. Sua pele morena estava melada com o sangue que agora escorria farto.

Se jogou dentro da água, confiando cegamente nas histórias de poder curativo daquele lugar. Se fossem mentiras estaria acabada em breve, não tinha tanta possibilidade de escolha. O reflexo na água mostrava seu rosto pálido, lábios trêmulos, encarava a morte que a olhava de volta. Dandara bebia de uma poça ao lado.

A água do lago era morna e logo seu rosto retorcido deu lugar a um semblante de alívio. Percebia a névoa que saia das águas enquanto sentia seu corpo arder e os cortes fechando.

Ainda tinha uma última lâmina enterrada na pele, presa no espaço entre as costelas abaixo do seio direito. Usou os dedos para esticar a carne, penetrando a outra mão para segurar o metal. Afundou na água para que seus urros não ecoassem na mata e conforme seu corpo se retorcia, bolhas subiam no lugar de gritos.

Lembrou-se da última vez que esteve na estalagem do Cedro Vermelho e o tarot havia sido aberto para ela, o olhar temeroso de Luna Redhorn ao pronunciar as palavras sombrias e um desfecho curioso. Passaram duas semanas desde então, e a cigana devia estar nesse momento, rindo às suas custas. Apostava que podia lhe ver nesse momento, através do Olho de Patrim.

Emergiu tomando fôlego e a lâmina nas mãos. Sentiu a carne sendo fechada, os vapores subindo enquanto cauterizavam a ferida. Largou o corpo boiando, aliviada, enquanto olhava o céu já enegrecido. A noite caira de uma vez só, e embora estivesse quieto, haviam poucas estrelas brilhando e uma lua tímida. Era prenúncio de morte em sua cultura.

Mesmo cicatrizada, muito sangue foi perdido, sentia a cabeça começar a girar e a fome absurda comendo as entranhas. Nadou até a borda de forma esquisita, toda torta, parecendo uma bêbada nas praias de Hinnin.

“Apenas magia pode me salvar agora”, pensou. Deitou na terra molhada para pegar fôlego e foi se arrastando até a égua, que estava inquieta. Puxou uma bolsa de pele da montaria que abriu e tombou, com um frasco arroxeado caindo no seu rosto.

O corpo latejava muito e tateou o solo em meio a xingamentos até achar o frasco meio grudento pelo sangue. Retirou a rolha caramelo e levou aos lábios virando de uma vez em duas goladas. Era viscoso e morno, o gosto e aroma de flores e ervas, desceu rasgando sua garganta, queimando, seguido de um longo sussurro de dor.

Os Dragonetes voltavam a cruzar os céus com guichos roucos. Dandara começava a ficar agitada olhando para a mulher e para o ar. A guerreira ficou olhando enquanto as criaturas deslizavam pela noite.

O coração dela parou por alguns instantes, as brumas do lago subiram mais rápido enquanto sua visão turvou até que escurecesse por completa. Os sons começaram a ficar longínquos. Apalpou a lâmina que havia tirado de si, tateando as incrições nela.

Tentou rir mas estava imóvel, pensava naquele metal esculpido e na guerra que começaria pelo seu sumiço. Sentia a pele endurecer e fechou a mão o mais forte que podia escondendo o artefato. Seus pensamentos começavam a embaralhar.

A égua passou a empurrá-la de volta para o lago. A mulher já não sentia o toque, nem podia ver ou ouvir nada. Não pôde olhar Dandara que se curvava numa despedida e depois corria para dentro da mata. Estava afundando como uma pedra, uma estátua, solidificada pelo elixir roxo de Madame Alais.

“Assim deveria permanecer por muito tempo”, e foi seu último pensamento antes do silêncio mortal.

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⏰ Última atualização: Jan 17, 2023 ⏰

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