A Garota do Balanço

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Balanço meus tênis de um lado para o outro enquanto vejo as pessoas, pequenas, como formiguinhas, indo e vindo. Em breve, as luzes serão acesas. Milhões de luzinhas se movimentando pela avenida agora. A única disposta a se apagar sou eu.

Sentada no parapeito. A sessenta e sete andares. Em cima de um pequeno muro, balançando meus tênis. Se inclinar meu corpo demais para frente é queda livre, se para trás, me estabaco no piso do terraço. Me movo devagar, para frente e para trás, como num brinquedo de balanço. Meu favorito. Cantarolando uma das poucas músicas que lembro de você cantar para mim. Por que me lembro da música, mas não do seu rosto? Não lembro nem das palavras, apenas da melodia. O doce som daquela distante voz feminina. Como era mesmo? Uma voz carinhosa e maternal. Uma lembrança embaçada que me faz sentir segura e acolhida.

Como aconteceu? Como? De uma lembrança terna pulo direto para a entrevista com mais uma família candidata a me adotar. "Não adianta, Sr. Lucas. O senhor sabe que eles não vão me levar". Os casais sempre escolhem as crianças menores, e de pele clara. Passei a ficar triste depois de tantas entrevistas até chegar ao ponto de preferir me esconder no balanço do parquinho do que conhecer um novo casal.

Não era disso que eu queria me lembrar. Odeio lembrar disso. Quero lembrar da música. Quero aquela sensação boa. Aperto os olhos com força, balanço o corpo cantarolando. O vento esvoaçando meus cabelos cacheados, enquanto mexo as pernas. É como o balanço. Como no parquinho. Por que não lembro sua voz? Por que não lembro do seu rosto?

Depois que o casal ia embora, o Sr. Lucas vinha até mim no balanço, onde me escondia, e conversava comigo. Dizia que eu era especial e linda do jeito que sou. Que era questão de ter paciência e um pouco de esperança. Só que eu não era mais criancinha. Ele sabe que elas sempre são as escolhidas.

Às vezes, Isabela vinha com ele e brincava comigo. Ela tinha a minha idade, e trazia brinquedos, e maquiagem. Era muito legal. Tinha os olhos azuis, iguais os de Melissa.

"Esse combina com seu tom de pele". "Seu cabelo solto vai ficar lindo com esse creme". "Essa roupa vai ficar legal em você". Ela me enfeitava toda. Quando me olhava no espelho, parecia tão diferente. Tão bonita. Seus olhos azuis me contemplavam orgulhosos por ter feito um bom trabalho. Era tão gentil comigo. Separava brinquedos e várias coisas pra me dar sempre que vinha me visitar. De vez em quando, até pedia para Melissa comprar coisas novas só pra mim, como os cremes de cabelo, e a boneca que tinha metade do meu tamanho. Eu adorei, mas quando deixei o lugar, também deixei a boneca junto da Gabi, que precisava bem mais do que eu. Ela acabara de chegar porque os pais haviam morrido num incêndio. Nas primeiras noites ela chorava. Até que eu dei a boneca. Agarrou com força e disse "obrigada". Cantarolei a música. A sua música. Até ela conseguir dormir. Parecia um anjinho. Acho que na idade dela eu também dormia assim quando você cantava para mim. Por que não consigo me lembrar?

O Sr. Lucas me disse que você não foi boa comigo. Que disse coisas tão ruins que minha mente preferiu bloquear as lembranças de quando eu era criancinha. Eu não entendo. Se você não era boa pra mim, porque me lembro da sensação de você cantando pra mim? Por que é tão bom? As lágrimas caem do meu rosto. Abro os olhos e as vejo sendo espalhadas pelo vento. Será que vão cair na cabeça de alguém? A cidade acendeu suas luzes. O sol está quase se pondo. Sinto vertigem ao olhar para baixo. Qual será a sensação de quando eu atingir o chão? Vai doer muito?

Acho que no dia que Sr. Lucas sofreu o acidente e Isabela se bateu deve ter doído. Doído muito. Levou meses para que ele pudesse falar comigo sobre ela sem que seus olhos ficassem brilhando. Ele não se deixava chorar na minha frente, mas eu, assim como todos que passavam pelo corredor em frente ao seu escritório, podia ouvir. Era um choro de dor. Me deixava mal. Eu queria não lembrar do Sr. Lucas chorando, porque me faz sentir muito mal. Por que me lembro de coisas que não queria, mas não consigo lembrar do seu rosto?

Sr. Lucas sentiu dor por muito tempo. Talvez tenha sido por causa da dor que decidiu com Melissa me levar pra viver com eles. "Esse é seu novo lar", me disseram sorrindo. Foram gentis. Mas me deram as roupas de Isabela, o quarto de Isabela, os brinquedos de Isabela. Por algum motivo, isso me fazia sentir pior que no orfanato. Se Isabela estivesse viva, eu não teria entrado naquele apartamento.

Passaram-se meses de almoços e jantares à mesa. Silenciosos, como se algo estivesse preso na garganta de todos.

Ontem, Melissa cismou que eu devia parar de chamá-la pelo nome. Pediu que lhe chamasse de "mãe". E eu chamei. Ela sorriu com seus olhos tão azuis, e me abraçou. Mas, não parecia certo. Melissa não cantava pra mim como você. Ela não tinha o seu rosto. Como era mesmo o seu rosto mesmo?

A porta do terraço bruscamente se abre. Me dá um susto. Quase me desequilibrei para frente.

— Alice, não faz isso! — Ela grita, desesperada ao me ver.

— Melissa? Não era pra você me encontrar — Coloco as mãos no meu balanço e me ergo de pé sobre o muro. Agora é minha corda bamba. Viro, ficando de frente para ela, e olho para o chão. Depois olho para o abismo de trás de mim. É como brincar de "o chão é lava".

— Por favor, desce. Vem para mim. Não faz isso com a sua vida. — Os olhos azuis choram — A gente já passou por tanta coisa, filha.

— Não sou sua filha. Eu não sou Isabela.

Ela fica em silêncio. Me senti mal na mesma hora por dizer isso. O rosto dela ficou ainda mais triste, por minha culpa. Seu corpo treme, enquanto leva as mãos à boca.

— A minha mãe cantava pra mim. Cuidava de mim, mas me abandonou. E você só me chama de filha porque perdeu a sua. — Estou chorando. Eu não queria dizer essas coisas pra Melissa. Não me entendo.

— A gente perdeu a nossa garotinha, mas Isabela amava muito você. Sempre conversava conosco sobre como se sentia mal de ver você sem ter um lar. Ela até já nos pediu pra que você fosse a irmãzinha dela, mas antes era inviável. Alice, eu não sou sua mãe, você tem razão. Mas eu gostaria muito de ser. Isabela também queria muito que isso acontecesse.

Tento me lembrar do seu rosto. Minha cabeça dói. Limpo meu rosto molhado com as mãos.

Sr. Lucas entra pela porta. Ofegante. Parece que depois de me procurar no prédio o porteiro contou que estávamos aqui. Os dois pedem com insistência que eu vá pra casa com eles. E falam várias coisas que eu não consigo escutar porque estou pensando em você. Não entendo. Por que não pôde me amar como Melissa amou Isabela? Você não me deixou porque partiu como os pais da Gabi. Você apenas não me quis. Me abandonou. Por que, mãe?

— Filha? — Me chamou, o Sr. Lucas. Percebendo que eu não estava ouvindo.

Olho para os dois, vendo-os esperar por mim ansiosos para me levar pra casa, e me chamar de filha.

Finalmente, me lembro do seu rosto. Da sua voz. E do que me disse.

O sol já se pôs.

Em direção ao meu destino pulo do muro.

Balanço de Arranha-céuOnde histórias criam vida. Descubra agora