O dono do cão

.

Certo dia, o Dono foi até o cachorro e o levou para casa. O cachorro era novo, filhote. E o Dono lhe deu teto, cama e comida. Tornaram-se companheiros, confidentes. O Dono falava muito. O cachorro ouvia. O cachorro era o único que ouvia o Dono. Aquele Dono, há muito tempo, só convivia com cachorros. E se irritava, se angustiava, sentia asco constantemente. O cachorro apenas observava. Apenas assistia. O Dono sofria todos os tipos de transtornos imagináveis. E punia-se por isso. Punia suas entranhas, esmagava sua alma num ardor incontrolável e feroz.

Quando com um cachorro ainda pequeno, dava-lhe carinho, amores, ternuras. O Dono tinha todas as loucuras, mas sabia conter-se, pelo menos com cachorros. Pelo menos até quando os cachorros crescessem. O cachorro cresceu. Mesmo grande, o cachorro não tinha medo do Dono e aceitava suas condições. Aceitou desde o primeiro cafuné. Aceitou desde a primeira surra. Submeteu-se sem reação, mesmo já tendo porte suficiente para reagir. O cachorro nunca reagiu aos ataques do Dono. Quando, por nada, recebia uma bica na boca, no meio do estômago, o cachorro se afastava. Grunhia e se afastava. Dava ao Dono o tempo necessário. Depois voltava. Voltava como se nada tivesse acontecido. Como se nada tivesse acontecido, pedia carinho. E ganhava outra bica. E se afastava. E esperava. E voltava. E, de novo, pedia carinho. E não mais ganhava. Mesmo assim, sempre voltava.

O cachorro nunca fora o único do Dono. E sabia disso. Assim mesmo o amava. O cachorro amava o Dono. O Dono amava a si mesmo. Amava tanto a si mesmo que substituiu os outros por cachorros. Os desejos da carne e do corpo, supria consigo. Não lhe carecia o trabalho. Era herdeiro de grande quantia. E nada faltava. Nada faltava, exceto a humanidade. E, quando faltou humanidade, o homem virou Dono. E o Dono um dia morreu. E houve cerimônia. E apenas cachorros estiveram ali. Somente cachorros velaram o homem, que não era mais homem, que não era mais Dono, que não era mais nada.