Capítulo único

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Hoje eu acordei diferente

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Hoje eu acordei diferente. Por um momento pensei ter esquecido as cores, mas depois percebi que não era que eu tinha esquecido as cores, mas que elas faltavam ali. O branco lambeu cada manchinha de verde, azul, vermelho, e tentou me lamber também, tirar o restinho de cor que me resta. Peguei meu caderno e li um trecho:

"Essa bolinha aqui é vermelha, essa outra é rosa, essa outra é roxa, essa é amarela." Passei os dedos por elas, mas não havia outras cores, como o verde, e outras que eu não sabia o nome, mas algo me dizia existirem muitas outras no mundo. Então estava tudo ok, eu lembrava de quase todas as cores.

Dei alguns passos até a janela, para relembrar o verde, mas fui inundada por amarelo e azul. Era manhã do outro lado, mas não havia ninguém brincando nos jardins. Nunca havia.

Suspirei alguns segundos antes de Ângela bater à porta e entrar.- Bom dia, minha flor.

- Tenho um nome.

- Sim, e qual é? - Perguntou ela, encarei seu rosto por um segundo e então olhei ao redor, atrás daquele caderno - O que está procurando?

- Meu nome.

- Seu nome não está com você? Todos carregam consigo seu nome.

- Não, ele se recusa a continuar comigo. Por isso eu o coloquei em um caderno. Onde está esse maldito caderno? - Ela carregava no rosto um sorriso gentil que me tirava do sério.

- É esse que está na sua mão?

- Ah, é sim. Ele nem tem cor - Folheei até encontrar meu nome - Camila.

- Olá, Camila. Vamos dar um passeio? Bater um papo com o Rafael?

- Quem é esse?

- Não lembra dele? - Eu odiava essas perguntas, me lembrava que eu já não era a dona das minhas memórias, e sim, aquele caderno.

Abri e folheei de novo até achar com letras garrafais o nome RAFAEL, e sua descrição: um ridículo velho que pensa que pode me conquistar com piadas bestas sobre pombos. Entortei a cara e folheei de novo, RAFAEL: Um senhor agradável e bonito, mas fede a velho. Suspirei novamente e fechei o caderno.

- Como tem tantas descrições sobre ele? A maioria é ruim e a outra, duvidosa. Qual é a certa?

- Vamos vê-lo hoje, aí você escreve o que acha dele.

- Sim, eu não lembro quando o conheci, então dessa vez vou anotar uma descrição correta.Ela me ajudou a me vestir, e seguimos até ele, passamos por corredores também ausentes de cor, mas pessoas coloridas como pinturas de Tarsila. Anotei em meu caderno:

"Todos usam roupas coloridas, mas eu continuo usando roupas de velha. Não esquecer de comprar roupas de jovem."

Em meio às minhas anotações, um pensamento me veio à mente.Por que estou aqui? Quantos anos tenho? Quem é Rafael? Por que estou anotando tudo em um caderno? Quem é Tarsila?

- Senhora? - Chamei a mulher e descobri que o nome dela havia fugido da minha mente.

- Sim?

- Por que... - Não terminei a frase, um monstro roubou as minhas palavras. Parei de andar, senti como se mil olhos me observassem e riam de mim enquanto me chamavam de esquecida, de esquisita. Quem esquece as palavras? Quem esquece seu nome? Por que eu esqueço meu nome? Por que eu penso muito, mas minha voz não sai?

Uma lágrima abriu espaço para muitas outras. A mulher sumiu em um corredor, e eu fiquei encolhida no chão, tentando agarrar as palavras que eu perdia toda hora. O que está acontecendo? Ao fechar os olhos, eu estava em um balanço, e uma mão pequena me balançava.

- Mais rápido. Camila? - Quem é Camila? O que é Camila?- Sim, sim, quero voar até o céu.- Ninguém pode voar assim até o céu. Sua boba.

- Mas eu vou. Sou uma genia. Sabe que eu sou a melhor escritora da minha sala. Eu sou excelente com as palavras, eu consigo memorizar qualquer coisa. - Minha boca continuava se abrindo e pronunciando aquelas palavras, como se um demônio tomasse posse de meu corpo. Eu nunca fui assim, desde que eu me lembro sempre foi o quarto branco e a mulher que não lembro o rosto e só.

- Eu quero ser cientista, você será escritora e escreverá meus atos heroicos.- Escreve você seus atos heroicos. Eu vou escrever os MEUS atos genialescos.- Essa palavra nem existe. Camila.- Cala a boca, Rafael - gritei e então abri os olhos, havia um homem de olhos tristes com o rosto perto do meu, a mulher o afastou e me deu água com um botão, creio que era um botão, mas não podemos engolir botões, ou podemos? Eu o engoli.

- Está melhor. Camila? - Acho que eu sou Camila, sim, creio que sou eu.

- Sim.- Ainda quer passear?

- No balanço? - A mulher e o homem trocaram olhares e então ela me respondeu com um sorriso gentil que detestei.

- Não temos balanço, mas temos um belo lago, vá com o Rafael ver o lago.- Rafael. Eu me lembro de você. - Os olhos do homem se arregalaram e se encheram de lágrimas, não sei se as lágrimas caíram, pois desviei a atenção dele e encarei meu caderno, anotei:

RAFAEL: O que me balança no balanço.

- Só isso que você lembrou? - Perguntou xeretando em minhas anotações.- Se afaste, eu odeio quando leem meu caderno.

- Desculpe, você poderia ler para mim todas as descrições que fez sobre mim? - Suspirei, e então li, pois ler era como recuperar as palavras que o monstro roubava. Comecei do final para o início:

Rafael: Um chato que veio me ver

Rafael: Não sei quem é, mas sou obrigada a vê-lo todo dia.


Rafael: Ele me abraçou e eu chutei a canela dele.

Rafael: Ele é alguém importante, mesmo que tenha cheiro de velho, ele é importante, só não sei quem é.

Rafael: Eu tenho vontade de abraçá-lo, mas não sei o porquê.

Rafael: Assim que eu o vi, eu chorei, e isso foi estranho e assustador. Corri para o quarto.

Rafael: Eu amo seu cheiro, é o cheiro de erva-doce, mas a velha do último quarto, ama erva-doce, toma banho com xampu de erva-doce, usa condicionador, sabonete, perfume e até desodorante de erva-doce, e está me fazendo odiar erva-doce. Eca.

Rafael: Eu o amo. Meu coração dói quando eu o vejo. Por que eu o amo se nem lembro dele?Escutei um soluço, era ele, mas ignorei e continuei minha leitura:

Rafael: Meu amor, sinto que estou te perdendo. Não consigo mais segurar as memórias de você.

Rafael: Meu amor, meu mais amado, estou com medo, escrevo todos os dias nesse caderno que você me deu. Escrevo coisas que eu não devo esquecer. Mas é inútil, elas continuam sendo roubadas, minhas memórias continuam sendo tiradas de mim.

Rafael: Querido esposo, essa doença é diabólica, quando eu esquecer você. Me esqueça também, não quero ver você chorar.Parei e olhei para o homem chorando, pousei minha mão no peito, tentando ver se sentia algo, alguma palpitação, alguma batida errática, mas não senti nada ao vê-lo chorando. Limpei a garganta e continuei:

Rafael: O homem que eu amo, e construí uma vida feliz por trinta anos. Agora, devorada por essa doença que devora as memórias e as palavras, esquecerei de você em algum momento. Mas saiba que um dia eu te amei, e se as memórias não fossem devoradas, eu continuaria te amando por muitos e muitos anos.

Camila: Sou eu, esse é o meu nome, e creio que será a primeira coisa que o monstro levará. Por isso, vou anotar aqui o que eu não devo esquecer. Talvez um dia eu lembre de novo, ou não, quem sabe, a esperança é a última que morre. E talvez seja inútil escrever aqui, mas pelo menos tentarei guardar para mim minhas tão preciosas lembranças.

O que eu não devo esquecer (conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora