Uma vida por outra

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Era um dia sereno, tranquilo, calmo e ameno, a leve brisa balançava as folhas das grandes arvores que rodeavam a senzala, muitos negros andavam de um lado para o outro levando ervas e àgua.
Estava uma grande agitação, mulheres traziam roupas rasgadas e sujas, alguns panos também eram levados.
Ao centro da senzala pequena e baixa estava a ruiva deitada, seu corpo ainda nu e as feridas expostas e secas, o sangue já coagulado e formando pequenas cascas sobre os cortes, muitas mancha arroxeadas marcavam o corpo da ruiva e seus olhos permaneciam fechados.
João, o mais velho e sábio dos negros se aproximou da garota, suas mãos habilidosas maceravam as ervas em um prqueno pote de madeira, colocava um pouco de àgua à mistura formando uma pasta esverdeada.
O velho sentou-se ao lado do corpo inerte da garota e cantou baixinho uma antiga canção de cura de seu povo, enquanto cantava seus dedos umidos pela pasta eram passados na ferida deixando rastros esverdeados.
Todos os outros negros se curvaram levemente, os joelhos dobrados contra o chão e as mãos unidas como em uma prece, e talvez eles estivessem mesmo rezando para que a jovem se curasse.
Luis, o pequeno negro que Helena acolhera como filho, deixava solitárias lágrimas escorrerem por seu rosto enquanto seus lábios abriam e fechavam trêmulos, dizendo algo tão baixo e rápido que apenas podia-se ouvir a palavra "por favor" escapar por seus lábios arroxeados.
O negro mais velho encerrou sua cantiga e se levantou indo para fora da senzala o mais rápido que suas frágeis e fatigadas pernas conseguiam ir, voltou pouco depois carregando algumas folhas e panos em suas mãos, aproximou-se da jovem e tornou à cantar.
As ervas foram colocadas sobre os ferimentos da ruiva, assim como no meio de seus seios e sobre sua testa, as mãos trêmulas e enrugadas do homem pairavam sobre o corpo pálido enquanto de seus lábios algumas preces eram proferidas em um mantra calmo e acolhedor.
Após terminar as rezas o homem cobriu-lhe a nudez com os panos e deixou sua mão pousar suavemente sobre a testa da ruiva.
-Que pai Obaluae te mantenha viva e te cure, minha filha - o homem afastou a mão em seguida e se levantou, os outros negros fizeram o mesmo e voltaram à suas tarefas, apenas algumas mulheres ficaram por lá observando Helena dormir serenamente, em seus corações a esperança brotava, desejavam de todo o ser que Helena recupera-se suas forças para poder erguer-se e fugir dali.
O senhor do engenho dava voltas por suas terras, o chicote sempre em mãos enquanto observava seus escravos cortarem a cana e carregarem nas costas todos os pedaços.
-Andem, sem moleza, preciso disso pra ontem - o homem tornou a chicotear os escravos e um sorriso maquiavélico se formava em seus lábios, sentia-se vivo e animado ao chicotear as costas negras e deixar marcas que talvez nunca sumissem.
O velho João carregava com certa dificuldade a cana, como se elas pesassem toneladas, seu corpo estava fatigado e já não aguentava o que carregava em sua mocidade, seu corpo estava envelhecido, porém sua alma era vivida e brilhante, muito diferente do brilho opaco que carregava no olhar.
O chicote chiou alto contra as costas nuas do velho João e este caiu no chão sem mais poder aguentar as dores fisicas e as dores da alma que trazia consigo.
-Erga-se, seu preto inútil, trabalhe, se não trabalha então não merece viver - mais uma chicotada foi ouvida e os negros recuaram, muitos queriam proteger o negro João, todavia o medo era maior e a coragem se esvaiava por entre seus olhos amedrontados.
O senhor segurou o velho pelo braço e o puxou por toda a extensão do engenho, prende-o contra a estaca enorme de madeira, os braços para trás e aquela posição lhe doia suas juntas.
Mas um ricochete contra o negro, depois outro e mais outros sucessivamente e aumentavam sua intensidade conforme as chicotadas, a cada chicotada a força e a dor do couro contra a carne era mais forte.
Foram golpes que pareceram durar horas, mas que levaram poucos minutos, o velho João já não gritava mais de dor, sua voz havia sumido, assim como sua alma escapava aos poucos daquela tortura horrenda e dolorosa, seu corpo amarrado contra a madeira se encontrava em completa inércia, seus olhos arregalados em completa dor e agonia, seu corpo ferido repleto de cicatrizes e as mãos com calos de tanta cana cortar.
Os artistas que vissem a cena achariam grotesca, tão horrenda e cruel, tão melancolica e dolorida que poucos seriam aqueles que ousassem pintá-la.
O homem guardou o chicote preso ao cinto e aproximou-se do corpo do negro, chutou-lhe algumas vezes o flanco exposto e descoberto e após constatar a morte do negro deu as costas voltando para a casa grande.
Os negros entraram em alvoroço com a morte do velho João, muitos se aproximaram do corpo e o carregaram até uma grande àrvore onde outros cavavam um buraco enorme para sua sepultura, todos estavam ali quando o corpo foi colocado ao lado do buraco.
Muitas mulheres choravam e alguns se aproximaram para darem seus adeus ao homem bondoso que João era, um canto de lamento começou a propagar-se por todos os negros, era tão triste que poderia se comparar ao choro dolorido de uma criança, ao choro de uma mãe que perde o filho cedo, só quem perde sabe a dor de perder.
Porque a dor de perder é uma dor maior do que qualquer outra, é um vazio que se instala junto com a dor, é pior que chicotadas, que ferro quente contra a pele, de mordaças ou espancamentos, é uma dor na alma, a dor no corpo logo sara, mas a dor do espirito perdura por séculos e até a eternidade.
Aos poucos o canto aumentava o tom, era um coro incessante de vozes em uma prece fúnebre, o choro do coração, a dor era jogada aos ventos para serem levadas para longe e nunca mais retornar.
-Nosso querido João, que os anjos e todos os orixás acompanhem sua chegada aos reinos dos céus, pois é lá seu lugar, homem bravo e valente, forte de corpo e alma, persistente e amoroso, a bondade em forma humana, que o senhor dos vivos e dos mortos leve você ao lado dele e o tenha como filho amoroso que és - orou um dos negros de forma fervorosa, seus joelhos contra o chão de terra e seus olhos voltados para o céu que deixava aos poucos de ter suas cores azuladas para adornar seu belo vestido de seda laranja.
Um novo canto foi proferido assim que o corpo foi erguido e levado para o buraco, lentamente o corpo foi abaixado até tocar a terra fofa, o canto tornou-se mais dolorido quando os negros começaram a jogar punhados de terra sobre o corpo inerte e sem vida.
Passaram ali alguma horas, revezando entre rezas e cantos, orações eram ouvidas ao longe e quando a noite chegou lenta e serena os negros se sentaram ao redor do túmulo, suas mãos entrelaçadas e levemente erguidas aos céus.
Uma última oração foi ouvida, mas dessa vez não era uma prece triste, era de agradecimento, porque apesar de tudo o que passavam todos os dias eram agradecidos por estarem vivos, por estarem juntos e por João ter sido liberto do peso que carregava em suas costas.
Ao final todos se levantaram e voltaram para a senzala, alguns conversavam sussurradamente sobre a fuga que fariam no dia seguinte, não seriam muitos negros, apenas dez ou onze homens e as crianças junto com algumas mulheres.
Ao chegarem na senzala viram que a ruiva ainda estava inerte, as ervas estavam ali, mas os ferimentos pareciam melhores, assim como sua respiração era leve e tranquila, Luis aproximou-se da ruiva, seus olhos carregando a dor da perda e um leve brilho de esperança na recuperação da garota.
-Por favor... acorde... não me deixe agora... - Luis deixou suas lágrimas escaparem e apoiou seus braços sobre a barriga da mulher, suas lágrimas quentes caindo sobre a pele translucida da ruiva - não sei se suportaria te perder também... Acorda, por favor...
E ali Luis entrou em sua inconsciência, o corpo cansado entrou em um estado de torpor e solenitude, seus olhos fechados e os rastros umidos das lágrimas secavam lentamente.
Seus braços apoiavam seu rosto e este estaa virado para a face de Helena, como se a observasse, apesar dos olhos fechados.
Aos poucos a mão de Helena se ergueu tocando-lhe os cabelos gentilmente em uma suave massagem, como uma mãe a afagar os cabelos do filho quando este se machucava enquanto corria pelas ruas desertas e tropeçava em pedregulhos soltos.
Era assim que Helena se sentia, como uma mãe para aquele garoto orfão, sentia-se responsavel por ele e queria cuidá-lo.
-Eu estou acordada, Luis, por você eu continuo viva, agora durma, minha pequena criança, deixe o sono embalar sua inocência de garoto - Helena continuou a afagar-lhos cabelos e adormeceu novamente, caindo em um sono sem sonhos.

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