Acordar naquela manhã foi um desafio do outro mundo. A cama era como uma pluma que me embalava ao som das folhagens que circulavam à medida que o vento de julho assobiava pelos cantos externos da casa. Os sussurros incompreensíveis que rodopiavam pelas divisões acalmavam as calamidades daquela velha aldeia. O carteiro que passava de manhã para deixar uns jornais à porta, normalmente não olhava para o rosto das pessoas, mas hoje, quando abri a porta ao mesmo tempo que ele surgia com os raios de sol, ele olhou para mim. Apenas olhou. Sem pensar muito, peguei no jornal diário 'Os contos da aldeia' e folheei algumas páginas para ver se tinha algo de interessante a acontecer no mundo industrial. Curiosamente, aquele jornal era ainda do dia 28 de junho. Estranho, o carteiro enganou-se.
Como sempre, a pedido da avó, que por esta altura já não pedia, fui à horta, atrás da casa, colher alguns legumes para a salada do almoço. Como sempre, olhei para o cemitério que existia do outro lado da rua. Pena que não dava para ler as campas de tão velhas que elas estavam. Quando estava a voltar para casa, com alguns tomates, pepinos e cebolas, reparei numas sombras no outro lado do terreno, atrás da cerca. O avô diz que eles são vizinhos e que eu não posso falar com eles. Eles estavam tão longe e a olhar para mim tão fixamente, quase que tropecei. Nunca vi o rosto deles, mas sempre os ouço a falar, a sussurrar, alguns até gritam nas noites mais tempestuosas. Devem estar com medo da tempestade que se está a aproximar. Normalmente o vento é forte, ensurdece quem o ouve. Talvez seja por isso que eles gritam, porque ninguém os ouve. Porque eles não se ouvem mais.
Ao fim daquela manhã, quando o avô voltou da floresta, que se encontrava a uns longínquos metros de distância, trouxe uma coroa de flores para a avó. Passou por mim, antes de se sentar no alpendre e olhar para a casa do lado, que estava completamente queimada, sobrando apenas uma chaminé intacta. Contava que aquela casa era da mãe dele, pelo que proibiu quem quer que fosse de lá entrar. Pergunto-me porquê. A senhora que às vezes espreita da janela parece tão simpática.
Ao fim da tarde, antes do sol se deitar, gosto de ir à floresta, de mergulhar naqueles arvoredos que a cada ano acrescem um anel aos seus troncos, de sentir o cheiro decadente da floresta, acompanhado de pinho podre, entrelaçado com ácer e carvalho, de pisar as folhas quebradiças, perdidas no vazio, rodeadas de carmesim e ouro. O avô diz que aquelafloresta é demasiado viva para algo que não é racional. Quem pisa naquele terreno, depois da hora, raramente consegue encontrar o trilho para casa. Quando se entra, todos sabem que o tempo não funciona a nosso favor. A vida passa em poucas horas. Também é normal ouvir alguma coisa a seguir-nos. Mas está tudo bem, eles apenas tentam saber quem somos e não tarda, eles nos abandonam quando o nevoeiro começa a subir. Eles tem medo do nevoeiro, ou melhor, do que ele guarda. Por isso é importante seguir o caminho pelo qual entramos. Pena que poucos sabem que não podemos sair pela entrada, porque da próxima vez, eles saberão o suficiente para nos manter cativos e, eventualmente, acompanhar-nos.
Muitas vezes, tenho o infortúnio de encontrar alguns veados que carregam o peso fúnebre dos inimigos nas suas hastes gigantescas. Eles desvendam as profundezas da floresta enquanto deambulam pelo meio da bruma que se levanta do chão depois das cinco horas da tarde. Toda gente daquela aldeia sabe que não se pode ir à floresta depois dessa hora, como também, toda gente sabe que não existem veados naquela zona. Ainda por cima, veados que caminham sobre dois cascos. O mais correto seria apenas não se mexer enquanto eles passam tranquilamente. Às vezes, também, oferecem um presente. Sempre ouvi a avó a dizer para não aceitar presentes, porque vão querer algo em troca. Eles sentem a nossa presença e se sentirem o nosso medo, então está na hora de correr para bem longe. Talvez seja por isso que ninguém regressa a casa depois das cinco horas da tarde. Poucos sabem que existe algo remoto a repousar no seio daquele terreno. Então é melhor não perturbar. As pessoas tem o hábito de seguir os trilhos e quando tentam regressar pela entrada, estes transformam-se em labirintos e os labirintos em curvas e as curvas em círculos e os círculos em loucura. E quando a loucura consume as almas dos perdidos, talvez, algures no horizonte, algo oscile, algo acorde com os gritos.
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onde o vento sopra
Short StoryExistirá algo que possa fazer para não querer voltar a viver?