O FILHO DE ASHKAR

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A chave cismou em não entrar desta vez. Rebelde, relutou em seguir o seu propósito, dançando nas mãos de Phil.

Logo no dia de hoje?

Nunca deixava o trabalho mais cedo, e justamente hoje, a chave dançarina o mantinha do lado de fora de sua casa. Nunca desejou tanto estar em casa como naquele instante. Um mal-estar inesperado o havia tirado de sua rotina. Largou tudo que estava fazendo e saiu do escritório. Em seu íntimo, odiava o seu trabalho, mas não o cotidiano maçante. Pelo menos sabia o terreno que estava pisando.

Finalmente a chave cruzou os estreitos e sinuosos caminhos da fechadura, se rendendo ao esforço incomum que fora feito para que aquela porta de madeira fosse enfim aberta. Em sua ânsia por adentrar o recinto se equivocou, colocando o pé esquerdo a frente do direito. Parou por um breve momento, questionando-se a respeito das consequências daquele ato falho. Sempre fora bastante supersticioso e refletiu ligeiramente sobre suas consequências, mas sua indisposição o fez ignorar provisoriamente seus tabus e correu para o banheiro. Fechando a porta, ali ficou por algum tempo, tentando desfazer-se de sua morrinha.

Talvez o almoço tenha sido a causa.

Depois de um longo hiato a porta foi aberta. Deixou o banheiro levemente tonto, caminhou com dificuldade até a sala, sentando-se no sofá de segunda mão.

Sempre reclamou do antigo sofá, mas em seu atual estado, aquele velho acento lhe pareceu o mais confortável dos lugares. Gozava de boa saúde e não entendia aquela mudança repentina. Ofegante, olhou rapidamente para o controle remoto. Assistir TV poderia ajudar em sua recuperação. Não costumava ver televisão, muito menos neste horário. Sua tentativa de pegar o controle remoto foi interrompida com o som da sineta da porta.

O primeiro toque foi prontamente ignorado, não se sentia disposto a pular do sofá imediatamente para saber quem poderia estar do outro lado da porta. A sineta voltou a tocar. A partir do terceiro silvo foi difícil desconsiderar a insistência do misterioso visitante. Levantou-se, ainda zonzo. Foi até a porta e ao abri-la, se deparou com algo atípico.

Uma figura exótica, de pelo menos dois metros de altura estava parada à sua porta. Atônito, encarou o grandalhão. Além de alto, tinha um abdômen avantajado e uma grossa tira de couro segurava sua pança, e de quebra, evitava que suas calças viessem abaixo. Uma machadinha também adornava sua cintura. Parte de seu torso estava sobre uma espessa barba alaranjada repleta de tranças e argolas toscas. Um extravagante bigode ruivo emoldurava o seu sorriso. Suas sobrancelhas despenteadas estavam em pé, revelando olhos de um azul luminoso.

Um breve silêncio denunciava o desconforto daquela situação. O estranho mexeu as sobrancelhas para cima e para baixo, como se estivesse à espera de algo. O visitante não aguentou mais aquela indecisão, pedindo para entrar.

— Não se deve deixar as visitas esperando do lado de fora! — Falou em uma língua enrolada, mas que foi surpreendentemente compreendida.

Voltando a si, Phil abriu caminho para o estranho adentrar sua residência. O visitante entrou, resmungando em voz baixa. Não deu para ouvir direito desta vez, apenas percebeu-se o grande bigode dançando em sua boca.

— Quem é você?

— Meu nome é Gorbok! — Falou todo orgulhoso de seu nome e revelando aos olhos um conjunto de dentes grandes e amarelados.

Retirou o elmo, colocando-o sobre a mesa. Possuía um espesso cabelo e uma grande trança que descia pelas costas, terminando na base da cintura.

Gorbok entrou na cozinha, remexeu os armários e a geladeira. Sem jeito, fazia bastante barulho.

O FILHO DE ASHKAR (Conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora