Cap 4 (pt.1)

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Duas semanas antes:

Katherine estava sentada no meio de sua cama, deixando as lembranças do sonho que tinha tido há alguns minutos vagarem por sua mente. Seu rosto ainda mantinha expressões confusas. Ela nunca entendia como seus sonhos se construíam. Não se lembrava de nada parecido com aquilo ter lhe acontecido, nem se lembrava dos rostos de seus pais. Tudo que sabia sobre eles era que tinham morrido em um acidente quando era nova demais para se lembrar. Sempre que sonhos assim a visitavam, ela se deixava desmanchar em lágrimas. Pareciam tão reais. O sangue tinha um vermelho tão vívido, um cheiro tão forte. Os gritos tinham uma sonoridade tão assombrosamente aguda e desesperada que não conseguia segurar o choro preso em sua garganta.

Aquela sensação de sufoco parecia querer espremer seus pulmões até que eles se tornassem duas uvas passas e esmagar seu coração até que ele parecesse geleia de morango. Teria passado algumas horas parada ali, apenas pensando em tudo aquilo, mas foi despertada de seus pensamentos com o toque de seu telefone ecoando pelo quarto. Ao seu redor estava completamente escuro, sem nenhuma luminosidade, exceto pela luz fluorescente que saía de seu telefone. Sentiu seus olhos doerem quando virou para trás e focou no brilho desnecessariamente alto e branco da tela. Voltou para sua posição anterior, desviando daquela luz e puxou uma grande quantidade de ar pela boca, soltando logo em seguida. Sua cabeça se abaixou e suas mãos foram ao seu rosto, massageando a pele debaixo dos olhos fechados.

Tirou o amontoado de edredom grosso que cobria apenas suas pernas dobradas, virou novamente e se esticou para alcançar o aparelho de cima da mesa de cabeceira. Sua visão embaçada pela claridade não conseguiu decifrar o nome de quem ligava. Só soube quem era quando atendeu e escutou aquela voz masculina inconfundível falar rapidamente:

-Katherine, boa noite. Acharam mais corpos... parece ser coisa do Wendigo. Vou te mandar a localização. - Era o Sam. Ele estava alerta e agitado, mas com um grande pesar na voz. Dava para escutar os murmúrios ao fundo. Ele já estava na cena do crime, ao que tudo indicava.

Katherine, que ainda estava um pouco sonolenta quando atendeu, ficou agitada rapidamente ao escutar o que lhe fora dito e se levantou antes mesmo de Sam parar de falar.

-Ok. Estou indo. - Foi tudo o que ela disse antes de encerrar a ligação.

(...)

Quando Katherine chegou no local, pôde ver a pequena e meiga casa rodeada de luzes variadas e pessoas com seus olhares curiosos e cochichos de lamentação. Ainda era bem cedo, por volta das 5:00 da manhã, mas havia amontoados de pessoas em volta da residência. Civis do lado de fora da fita amarela, ainda com seus roupões e caras amassadas de sono. Os policiais perambulavam, entrando e saindo da casa, pisando grosseiramente com seus sapatos pesados pelas gramas aparadas que a senhora Jones tanto prezava.

As expressões de Katherine se fecharam completamente. Ficou irritada assim que viu a quantidade de pessoas "passeando" pela casa e modificando possíveis provas do crime. Eram assassinatos em série, um atrás do outro, e quem matava era muito bom, escondia seus rastros perfeitamente. Quase não havia evidências, e se estragassem as poucas que poderiam ter, o assassino não seria pego tão cedo.

Enquanto dava longos passos em direção a casa, seus cachos pouco definidos voavam com a brisa gelada atingindo seu rosto. Chegando perto, teve que se esgueirar entre as pessoas para passar pela entrada da cerca. Ao chegar perto da fita amarela que circundava a estrutura, levantou ela acima de sua cabeça e passou por baixo dela. Logo pôde avistar Sam vindo em sua direção.

-E aí, você... - O moço dos cabelos encaracolados parou de falar assim que se deu conta das expressões nada felizes que Katherine carregava. - Que cara é essa? Ia falar que parece que chupou limão, mas lembrei que tu gosta de limão com sal. Esquisita.- Fez uma careta de nojo enquanto falava. Ele tentava descontrair um pouco mesmo que estivessem em uma situação delicada, sabia o quanto a mulher estaria a beira de um colapso com mais corpos sendo encontrados. 

Katherine revirou os olhos e foi se aproximando mais de Sam.

-O que essa gente toda está fazendo aqui? Olha só esse tanto de pegadas - Apontou para as marcas na grama - E se o assassino tivesse deixado alguma?

-Você sabe que não deixou. - Ele suspirou alto. - Ele nunca deixa. E as pessoas estão sendo tiradas, sabe como é difícil lidar com gente fofoqueira.

-Como aconteceu? - Katherine se deu por vencida, não era hora de discutir.

-Veja você mesma. Vem. - Ele seguiu para a casa, e Katherine foi atrás. Andaram por um longo jardim colorido, repleto de flores e plantas que Katherine não fazia ideia de como se chamavam. Ela olhava para todos os cantos, buscando uma mínima pista sequer.

Assim que chegou na porta, pôde ver um buraco simétrico no vidro perto da maçaneta, dando passe livre para a tranca. Foi assim que o assassino conseguiu entrar.

-Toma. - Sam estendeu um par de luvas esbranquiçadas e uma roupa de proteção para Katherine. Era necessário para que ela pudesse tocar nos lugares sem contaminar a cena do crime.

Ela vestiu e foi dando passos cada vez mais lentos enquanto andava pela casa, tentando capturar cada detalhe.

Estava tudo em perfeito estado, nem parecia que tinha sido invadida. As paredes bejes com quinas em branco continuavam na mesma coloração. Os móveis nos mesmos lugares, os itens de valor intocáveis, as fotos dentro das molduras carregando tantos sorrisos da família ainda estavam ali. Aquela fruteira horrível que o neto deles tinha feito com papel, cola e muito glitter azul permanecia no mesmo lugar que a senhora Jones orgulhosamente posicionou. Tinham desenhos de crianças colados na geladeira e quadros com pinturas infantis pendurados pelas paredes. Tinham uma decoração agradável e aconchegante de avós amorosos.

-Os corpos estão lá em cima. Parece que estavam mortos desde a madrugada de ontem. Os vizinhos deram falta deles e chamaram a polícia. Os quatro estavam dormindo quando aconteceu. Ainda não acharam nada aqui em baixo além dos resquícios de luvas de borracha. - Disse Sam com pesar.

-Quatro? - Assim que ouviu, Katherine perguntou, franzindo o cenho e inclinando a cabeça levemente para o lado em confusão. Pensava que apenas o casal estava ali. Eles moravam sozinhos, afinal.

-Os netos estavam em casa quando o Wendigo atacou. - Seu parceiro teve as expressões entristecidas. Coçou a nuca enquanto falava, por puro desconforto. Qualquer assassinato era horrível, mas ele odiava quando envolvia crianças. - Um menininho de quatro e uma garotinha de sete. - Ele abaixou a cabeça e olhou para o chão brilhando de tão branco. - Horrível...

Katherine ficou tensa quando ouviu as idades, eram tão novinhos... Assassinatos de crianças deixavam qualquer um, no mínimo, desconfortável. Logo o seu sentimento de tristeza foi substituído pela raiva que sentia do assassino e dela mesma por não ter conseguido pegá-lo.

-Por que Wendigo? - Katherine perguntou para Sam assim que se deu conta do nome que foi usado para chamar o serial killer.

-Não conhece a lenda? - A mulher balançou a cabeça negativamente, e ele prosseguiu: - O Wendigo é tecnicamente um demônio, mas alguns Wendigos podem ser criados a partir de humanos que foram corrompidos pela fome de carne humana. E, bom, já vimos que esse assassino tem um certo apetite pela carne das pessoas. - Ele fez uma expressão de nojo assim que terminou de contar.

Katherine apenas escutou atentamente, mas nada disse. Ela estava enojada, não sabia como pôr em palavras tudo que achava daquilo.

Eles continuaram andando. Passaram pela cozinha e depois pela sala para chegar à escada que dava para os quartos. Haviam peritos por toda parte à procura de alguma evidência pelos cômodos. Cumprimentaram a mulher quando ela passou com polidos "oi" ou apenas um manejo de cabeça.

Katherine subia a escada de madeira branca com Sam igual a uma sombra acompanhando seus passos logo atrás. Ela ainda tentava captar algo de diferente ou, no mínimo, suspeito pelos degraus, mas não havia uma marca sequer, além daquelas feitas pelo desgaste do tempo.

Assim que chegaram no segundo andar, puderam avistar os fios de sangue escuro jorrados pelas paredes bejes. O corpo do senhor Jones estava estirado no chão do corredor, virado de barriga para cima, com algumas moscas zanzando sobre ele, o cheiro com sua blusa branca e calças de dormir quadriculadas encharcadas de sangue. Seus braços estavam esticados, e suas pernas dobradas. Havia pinturas decorando as paredes e um grande espelho ao fundo, ao lado de uma mesinha com um jarro de flores lilás.

(...)

Continua no próximo capitulo...

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