•Capítulo Único•

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Eu senti que meus sapatos molharam e as barras da calça social estavam começando a pesar conforme eu me aproximava do meu destino. Era uma noite de sexta-feira e as ruas da cidade grande estavam pouco movimentadas, tanto pelo horário, quanto pela chuva.

Assisti o letreiro do bar "Choro da dama" piscar em luzes lentas e avermelhadas.

Fechei meu guarda-chuva, balancei o bastante para expulsar as maiores quantidades de água acumulada e depois de um suspirar baixo, subi as escadas.

O dia havia sido cheio no escritório: relatórios sem fim, clientes deselegantes e máquina de café com defeito. Foi necessário engolir quatro pílulas para aliviar a carga diária antes de voltar para os abraços sufocantes da minha cadeira.

Quando cheguei em casa, passei horas do que havia sobrado do meu dia para escrever… Mas me deparei apenas com a caneta e uma folha vazia, quase tão vazia quanto minha consciência criativa.

Meu aparelho continha apenas notificações de e-mails para revisão do trabalho, as redes sociais eram supérfluas demais para perder meu tempo e eu esperava encontrar a caixa de mensagens do mesmo jeito de sempre: vazia.

Até que houve uma notificação no canto de uma conversa familiar.

Rubens: Choro da Dama. Às 11:30. Sem desculpas, Peter.

Foi naquele momento que eu saí às pressas para pegar o ônibus para o centro, o mais rápido possível. Eu planejei todos os passos a serem seguidos, todas as conversas incríveis que teríamos sobre a época da escola, todas as velhas memórias da adolescência…

Quando eu terminei de subir as escadas, estavam Rubens, Lucas e Marcos dividindo uma mesa. Me sentei. Pedi uma água.

— Jura? É tão difícil assim? — Marcos resmungou, bebendo um drink avermelhado.

— Pode apostar — Lucas bocejou, colocando as mãos atrás da cabeça — Cirurgias só são legais na faculdade, mas a pressão quando você está no comando delas… Um erro e pode acabar com a vida de alguma pessoa.

Lucas era médico. Conheci Lucas quando ele ainda morava na Bahia, era moleque como eu, brincávamos na rua até as nuvens dormirem e os grilos começarem a cantar. Foi o primeiro que eu conheci e minha mais velha amizade, era um garoto de ouro e o alicerce de orgulho do Seu Antônio e da Dona Neusa.

— Pelo menos, você salva vidas — Marcos resmungou, mergulhando a batata num potinho de ketchup — E eu que tenho que ficar o dia todo arrumando códigos? É cada raiva que eu passo.

Marcos era programador. Conheci ele quando estávamos no ensino fundamental, me dei conta de que éramos amigos quando estávamos na diretoria, com olhos roxos e sangue no nariz. Gargalhamos e zombamos do valentão ter se dado mal. Dona Ana vivia puxando a orelha de Marcos bem na minha frente.

— Pelo menos vocês não têm que lidar com um bloqueio criativo e se eu não alcançar o prazo, meu chefe vai me estrangular — Rubens estalou os dedos e riu da própria desgraça.

Rubens era Designer. Nunca morou na Bahia, na verdade ele só vinha visitar os avós e depois da morte dos pais, ele acabou aqui. Conheci ele quando estávamos no ensino médio e de cara nos demos super bem, fizemos um seminário juntos e acabávamos sempre praticando vôlei no final da aula.

Todos estavam rindo de piadas bobas. Marcos jogou uma batata-frita em Rubens e Lucas sujou a bochecha com ketchup, depois de alguns minutos, voltaram a falar do ensino médio e de memórias que eu me lembrava muito bem.

Eu lembro que as únicas memórias que eu tenho da minha infância, vinham de Lucas. Lembro que Marcos sempre me fazia parecer menos estranho do que eu achava que era. Rubens me fez sentir pertencente a algum lugar, já que eu não tinha isso em casa. Todos ali tinham seus defeitos e qualidades, via neles uma família.

Porém, por mais incrível que fosse. Aquela hora eu percebi que não era a mesma coisa, não havia aquela euforia que tínhamos quando jovens. Não havia mais espaço na mesa para jogos de PS3, não havia cadeiras para falarmos das notas das provas e muito menos batata-frita o bastante para as questões da faculdade.

Eu não tive escolhas para entrar na faculdade, não tinha sonhos para alcançar e nem mesmo tinha ânimo para escrever como antes.  Eu tinha um teto, eu tinha comida e tinha um emprego… Mas um vazio sempre restava em mim.

Eu tentei preenchê-lo com sonhos de papel, personalidades de vidro e amores condicionais.

Eu me sinto morto.

Eu sinto que eu não existo, que sou apenas um telespectador da minha própria vida.

Por mais que eu me esforce para demonstrar todo o meu carinho por Lucas, Rubens e Marcos, ainda sinto que eu não deveria estar aqui. Esse foi o meu lugar um dia, mas não sinto que seja mais…

Marcos nunca leu meus rascunhos desde o ano passado.

Faz tanto tempo que Rubens não me manda mensagem, que eu nem me lembrava mais de seu número.

Lucas nem tem meu número.

Eu não guardo uma revolta interna, não me imagino batendo as mãos na mesa e exigindo que olhem para mim, pois eu cheguei faz 20 minutos e ninguém me cumprimentou ainda.

Me convenço de que sou espontâneo porque gosto dos meus amigos, que ninguém me deve nada e está tudo bem não receber atenção na mesma intensidade que eu desejo.

Mas ao mesmo tempo... eu queria que se dedicassem a mim da mesma forma que eu faço.

Pode ser porque eu não os cumprimentei.

Eu aceno e abro a boca para falar algo, mas todos caem na gargalhada com uma piada de Marcos.

Então eu sinto… que ninguém sente falta de mim?

Eu… Realmente… Não sei como me sentir.

Talvez, eu seja o problema?

Eu não consigo desabar em Lucas, Rubens ou Marcos sobre meus problemas de trabalho e nem mesmo como eu me sinto agora. Houve épocas que ficaríamos até tarde consolando uns aos outros, mas isso não aconteceria agora. Eles provavelmente diriam que não me esforço, talvez eles estejam certos…

Pego uma batata e mordo, pensando em voltar para casa e dizer para Rubens que estive ocupado esse tempo todo, que não poderia comparecer à reunião.

— Peter, você está aqui? — Marcos sorriu, com surpresa.

Peter, você está aqui?Onde histórias criam vida. Descubra agora