IV

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Faziam longos dois dias que não tinha notícias de Sonic, o que me levava a crer que aconteceu algo de ruim, aumentando minhas preocupações.

Esperei por horas a fio qualquer mensagem ou ligação do azulado, e nada veio. Em dado momento, meu celular tocou, me fazendo voar do lugar que estava até alcançar o aparelho, desanimando ao ler o nome "Silver. ♡" no visor.

Depois de várias horas de Silver relatando coisas sobre seu trabalho e a volta gloriosa que fez na delegacia após sua semana de folga, atirei-me cansado na cama desarrumada, triste demais com tudo que me acontecia - ou, no caso, tudo que não me acontecia.

Quando estava prestes a cair em um sono profundo, a campainha toca, e num salto, corro cambaleante até a porta, a abrindo e abraçando com força o físico de Sonic, que não hesitou em retribuir.

- Eu estava tão preocupado! - soltei, agora aliviado por vê-lo bem. Convidando-o para entrar, preparei um chá calmante para ambos, sentando-me no sofá em frente à poltrona que estava. - Você sumiu! O que exatamente aconteceu? Eu não consigo entender mais nada...

Sonic bebericava seu chá aos poucos, o rosto com uma expressão culpada bastante evidente, o silêncio incômodo preenchendo o local. Imaginando que ele não diria nada, abri a boca para comentar mais, mas sua voz baixa silenciou-me.

- Preciso esclarecer o que tá acontecendo... Você não merece ficar convivendo com isso sem ter certeza se estou bem ou não ou se perguntando quem são eles.

Agora vidrado no que dizia, assenti em concordância com a cabeça, ansioso para ouvir sua explicação. O garoto olhava o chão a todo momento, brincando com a caneca já vazia do chá.

- Eu tenho um trauma antigo... - Ele suspira, olhando fundo em meus olhos pela primeira vez, a tristeza estampada nos seus. - Eu não consigo me lembrar dele direito, só reconheço pequenos fragmentos dele, mas eu sei que aconteceu na minha infância. E ele me fez criar um trauma que dificulta muito a minha vida. - De uma só vez, ele soltou: - Eu tenho TDI!

Fiquei completamente neutro, até porque nem sabia o que exatamente era isso, e quando Sonic volta a abrir os olhos que antes havia fechado para a revelação final, percebe o quanto aquilo não fazia sentido para mim.

- Eu não sei explicar... Pesquisa.

Rápido como um raio, faço o que me foi mandado, pesquisando calmamente o significado e o lendo em voz alta para Sonic confirmar se era mesmo isso ou não.

- "TDI, ou transtorno dissociativo de identidade, é caracterizado pela presença de dois ou mais estados de personalidade distintos. Geralmente é uma reação a um trauma como forma de ajudar uma pessoa a evitar memórias ruins." - Assim que termino de absorver a explicação, ponho a mão na boca em surpresa, finalmente entendendo o que acontecia com Sonic durante todo aquele tempo. - Então quer dizer que... quer dizer que o Storm e a Sally na verdade eram... você?!

Com o olhar novamente perdido no chão, o azulado concordou com a cabeça, apertando uma mão na outra em um estado de nervosismo. Não demorei a me compadecer, fazendo um bico triste em sua direção.

- Oh, Sonic... É difícil?

Enfim, olhou-me, os lumes repletos de lágrimas e a voz chorosa.

- É muito complicado! Eu só queria poder sentir raiva, tristeza ou qualquer outro sentimento sendo eu! Qualquer tipo de gatilho já me deixa vulnerável e eles já tomam o controle de mim. Eu me sinto tão culpado por você ter conhecido eles, mesmo que apenas dois. Se eu pudesse evitar destruir sua vida com isso, eu com certeza o faria.

Atravessando a sala, sentei ao seu lado, puxando-o para mim em um abraço reconfortante. Logo, ele se pôs a soluçar, enterrando o rosto em meu peito. Fiz-lhe um carinho pelos espinhos, sussurrando na intenção de acalmá-lo:

- Ei, está tudo bem. Eu entendo, e eu vou ajudar você no que precisar. Todos eles fazem parte de você, e por mais difícil que pareça, vou estar aqui para vocês, não importa o que precisem.

Por muito tempo, Sonic chorou e chorou, encharcando minhas roupas com suas lágrimas pesadas e gordas. Mesmo quando tudo parou, continuamos juntos naquele móvel, sem soltar-nos, o abraço quentinhos relembrando nossos velhos tempos de amigos.

Agora mais calmo, voltou-se para mim, os olhos inchados e vermelhos.

- Eles estão determinados em ter o cartão de memória. Eu não sou forte o suficiente para detê-los, então eles continuarão vindo te importunar. Não entregue para eles, por favor. Se qualquer uma daquelas outras personalidades minhas obtiver o cartão, eu vou ficar ferrado quando voltar a mim.

- Eu prometo que vou proteger com unhas e dentes aquele objeto e só vou entregá-lo a você. - Afago sua bochecha, recebendo um sorriso calmo de sua parte como agradecimento.

No calor do momento, nem ao menos nos apercebemos da aproximação, que foi aumentando mais e mais, nossos olhares fixos um no outro. O desejo reprimido de beijá-lo tomou conta de meu ser, assim como tanto quis antes, quando estávamos os dois no orfanato. Agora, as barreiras poderiam ser quebradas, e antes que pudesse pensar duas vezes sobre o certo a se fazer, provei o sabor de seus lábios pela primeira vez, apreciando os poucos segundos que sua boca macia colidia contra a minha em uma explosão de magia viciante. Sentia-me completamente entregue a ele, mas no instante que nossas línguas tocaram-se, Sonic deu um pulo para trás, vermelho como um tomate, enfim recobrando os sentidos perdidos pelo ósculo formado anteriormente.

- E-Eu preciso ir! - Rápido como um furacão, correu para fora de minha casa, batendo a porta atrás de si.

Ainda em transe, esparramei contra o estofado, os dedos tocando levemente meus próprios lábios, temendo perder o gosto de sua boca na minha ou a sensação deliciosa de quando iniciamos o tão esperado beijo.

Voltando ao mundo real, levantei-me em um salto, notando uma coincidência estranha, e até mesmo engraçada, próxima à porta: assim como a Cinderela, Sonic acidentalmente acabou por perder seu sapatinho.

Os Mil e Um Você (Volume 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora