A primeira noite

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CAPÍTULO 1 A primeira noite

     Rúbeo olhou pra mim e seus olhos brilhavam o inferno em castanho, era o fogo refletindo
sua alma, eu compreendo! Sinto o vento invadir o quarto, seus assobios, e cuidadosamente ele
abre janela a janela, mesmo grandes e pesadas que sejam, fazem silêncio, contemplam a noite
iluminada, é verão. Ele coloca o candelabro na mesa de cabeceira da minha cama, se senta de
costas pra mim, e eu continuo deitado.

      Ele acende o cigarro na vela central, traga uma, duas, três vezes consecutivas, sua
ansiedade é diferente, difícil de entender, ele sabe agir no silêncio da noite, mas sua
inquietude é epidérmica, ele respira, se deita sobre meu abdômen, suas mãos são
semelhantes a febre, ele suspira, e pinta o dossel em fumaça. E me diz grave e em baixo tom:

     — Você é frio Dom, Fique calmo, eu quero só conversar, podemos?

     Eu parei pra pensar, o que esse seminarista estapafúrdio queria comigo na decima segunda
badalada do relógio? Ele me irrita, sua presença libidinosa, seus cabelos alaranjados, são uma
chama a mais em combustão, e as sardas! O que dizer sobre essa manifestação ruiva jacente
em mim? Cerrei os olhos, pigarreei, abrandei a respiração, e redargui:

     — Por que sendo frio eu não seria calmo? Frieza é calmaria. O que você quer comigo?

     — Anjos são anjos e não animais, meu caro anjo albino, e sinceramente eu quero que você se
desfaça dessa pose de inalcançável, e se porte como um animal, é isso que somos não é
mesmo? Animais... Você é louvável como Deus Dom! Mas você não é Deus, você é semelhante
a mim, você sabe o que eu procuro em você, você entende não é?

     —Acho que sei do que você está falando, eu considero isso anacrônico, você se tornará padre
e é religioso, seu celibato deve ser imaculado não é mesmo? Eu sei o que deve ser respeitado,
você me parece bêbado.

      Rúbeo se retorceu, travou seu braço por cima de mim e me falou sussurrando em meu
ouvido esquerdo:

     — Segredo nenhum sai desse seminário, você não é um repórter indiscreto né? eu não digo
nada a ninguém, e seu tio o reitor jamais irá saber.

      Eu o empurrei de cima de mim, a cama rangeu alto, ficamos parados que nem estátuas,
somente o ar se movimentava. Ele estava recostado no baldaquino da cama, seus olhos
queriam me matar, e em um ato brusco ele se levanta com ferocidade, apanha seu
candelabro, caminha em três passos, se vira pra mim e proclama respirando baixo:

     — Você será meu Dom! Eu tenho até sábado pra tomá-lo pra mim, até então durma bem
Anjinho.

     Eu não digo nada, sinceramente estou com um sentimento irresoluto, Rúbeo é um tanto
quanto macabro. Mais cedo ele foi airoso, gentil, mais que todos os outros, até mesmo meu
tio percebendo sua amistosidade para comigo, pediu para que ele me apresentasse a
biblioteca do castelo, ele foi atencioso me contou a história do seminário, nossa conversa fluiu,
as vezes eu percebia seus olhares oblíquos furtando minha aparência, ele nas entrelinhas
deixou claro como tinha me achado interessante. Eu sou atento a tudo, mas não captei todos
os seus sinais esgueirados pelas pedras do castelo. O ar me falta, e eu vou até a janela, noto uma coruja rei no alto do abeto, é branca como a
luz da lua, Rúbeo me disse que suspeita dela ser o fantasma da torre do sino. Esse seminário é
cheio de mistérios, desde os sinos que tocam sozinhos de noite as vezes, a mortes prematuras,
corrupção, ou demônios. Toda essa mitologia em volta do castelo me fez estar aqui para
escrever uma matéria completa e detalhada.
Até agora sei que o castelo Sánatas Onaireficul se tornou um seminário a 277 anos atrás,
quando seu último herdeiro o Bispo Lúcios Volture deixou como último pedido a igreja, sua
vontade de tornar esse lugar um local sagrado como um seminário. O bispo deixou um manual
de regras para serem seguidas com firmeza, e me disseram que esse manual tem mais páginas
que a bíblia. Em minha teoria acredito que só os filhos de ricos estudam aqui, os homens
formados sacerdotes nesta instituição sempre se destacam em cargos de alto escalão da
igreja, daí vem a teoria de corrupção. Eu já estive em outros dois seminários na região da
Carolingia ao sul do estado, e digo com total certeza, os padrões de vida neste lugar são
totalmente diferentes, a rotina é parecida sim, mas aqui as selas são separadas, e o número de
funcionários é bem maior, todos homens, não há nenhuma mulher em toda a edificação, sem
contar como a vida aqui me parece um tanto quanto luxuosa se comparada aos seminários do
sul.
Já é meia noite e meia e eu realmente quero parar de pensar, mas as coisas voltam a minha
cabeça, me deixando cada vez mais instigado a saber mais sobre aqui. Eu cheguei neste lugar
na manhã do sábado, e eu me lembro de ter notado olhares de execração, presumo que seja
minha aparência, sou branco ao extremo, pele, cabelos, unhas, bigode, e a única cor diferente
em meu corpo é o azul claro dos meus olhos que são como cristal e frágeis como tal também,
além disso tem meu sangue que me deixa rosado as vezes. E só o fato de um dos seminaristas
ser tão provocativo já me desperta uma vontade enorme de investigar, e nota eu conheci o
Rúbeo somente a um dia e até agora.
Eu pedi ao meu tio avô Sullivan o reitor, para fazer uma visita de uma semana, e a sua carta
em resposta a minha demorou 1 mês para chegar, eu não sei o motivo, mas até então sei que
sou o único repórter a conseguir estar aqui. Não é longe, eu moro em Gia, tive que pegar a
balsa para o estado da Cafalônia e vir de trem até Hortegaria, eu confesso que essa cidade não
mudou nada, ninguém abre as janelas, o silêncio é ensurdecedor, a treva e a morte não
abandonam as pessoas, desde de o último ataque na segunda guerra a três anos atrás, a
mágoa dos mortos continua a assombrar todo o norte, todos os dias.
Estranhamente o único lugar da cidade que não foi atingido ou atacado, foi o castelo
Sánatas. Ele fica dentro do bosque de Gravam no interior da cidade, e é em cima de um
Planalto de Rocha escura, que era apelidado de a “mesa de Deus”. Foi desgastante subir mais
de 500 degraus para chegar no topo sábado, eu senti pena dos que tiveram que entalhar na
pedra todos os voluptuosos estribos. Nenhuma poeira do castelo foi tirada do lugar na guerra,
e mesmo com Hortegária ocupada ninguém fugiu do seminário, como me disseram todos
perseveraram na fé, e oraram pelas baixas.
Eu preciso descansar, mas estou com sede, a água de minha jarra acabou. Silenciosamente
saio do meu quarto, vou com meu roupão branco até o andar inferior, eu tento diminuir a
intensidade dos meus passos pesados, o chão de madeira me condena, eu não quero parecer
um bisbilhoteiro. Para a minha desgraça a porta da cozinha está trancada, e não existe um
segundo que eu não tenha me sentido observado. O fogo de minha vela misteriosamente avultasse, projetando minha sombra por toda a escada, isso é estranho, outra sombra surge no
recinto, instantaneamente me desequilibro no bocel, e algo me segura dizendo:
— Continua frio Dom, porque está perambulando por aí a essas horas?
Me recompondo vejo quem me guarda, RÚBEO, ao menos sinto que posso manipula-lo, já
que percebi que existe um desejo dele por mim, e ele está bêbado eu acho, posso usar disso
ao meu favor. Eu o encaro nos olhos e com delgadeza respondo:
— Eu estava a procura de água para beber, você pode me dar?
— Tem água no meu quarto que eu posso te dar, a cozinha fica trancada a noite, o reitor fica
com as chaves em sua sala, e ele diz que a gula é um dos piores pecados.
Eu fico perplexo com Rúbeo, eu vejo em seus olhos tanta malícia, ele percebe que eu estou
o encarando indignado, e recita:
— O diabo espreita pelo vento, e enxerga pelo escuro, se alimenta dos fracos, se alegra com
insultos, e devora aqueles que se dispõem.
Rúbeo está me dando um certo medo, ele tem esse olhar felino, psicopata eu diria, e ainda
fala do diabo com um ar de graça. Eu estou com sede, mas beber dessa água que ele me
oferece, faz parecer que eu me disponho:
— Eu não vou querer Rúbeo, obrigado.
Ele ouve e sorri, um degrau abaixo de mim ele puxa minha mão, toma meu castiçal e apaga
a vela, eu preciso daquela vela, sou míope, enxergo pouco ainda mais de noite e sem óculos, e
ele sorri mais, e eu me desespero por dentro, eu não estou vendo quase nada, só um feixe de
luz lunar no rosto de Rúbeo que some, e com raiva digo baixo:
— Por que você fez isso?
— Ora, porque eu quero te ajudar a subir as escadas meu caro.
— Não precisa! Eu subo sozinho e me deixe em paz.
Vou subindo as escadas me apoiando no corrimão devagar, me sinto bravo e idiota ao
mesmo tempo, daqui em diante não vou entrar nesse jogo que já vejo ser doentio, Rúbeo não
está fazendo sentido pra mim, ele parece com algo que não está certo. Meus passos pesam,
rangem, ecoam por todo o saguão, eu não consigo me direcionar, a escadaria se divide como
uma teia de aranha.
Sinto minha mão se esquentar ao ser tocada, e isso gela minha alma, Rúbeo envolve seu
braço em minha cintura, e me guia pelos caminhos da escuridão, me sinto obrigado a aceitar.
No escuro a presença está pesada, é como se sobre meus ombros estivesse um peso
descomunal. Mas finalmente estou na claridade do meu quarto, sentindo minha garganta
como um deserto, e mesmo assim não irei aceitar a água de Rúbeo, ele me dá calafrios, mais
ainda agora parado na porta do meu quarto, eu me afasto dando passos para trás e Rúbeo
fecha a minha porta.
A noite está insuportavelmente mais quente, deitar na cama é como deitar em um colchão
de brasa, eu me deito no chão mesmo, estou atordoado com meus pensamentos, ao mesmo
tempo que sinto curiosidade agora sinto medo. Tem algo de muito estranho acontecendo aqui,
talvez se eu fosse embora seria melhor pra mim. Eu não sei.

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⏰ Última atualização: Oct 19 ⏰

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