Estrela

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Resquícios do tempo marcam a pele de quem pouco usufruiu do prazer sincero e genuíno que  nasce da identidade que raramente dá as caras entre duas almas. É como tocar novamente uma mão há muito conhecida, que sempre estendeu a palma em completa atenção e afeto incontestável. 

Assim sente a pueril heroína. Sente a alegria de ter encontrado em um boteco de esquina, num dia deveras estranho, um rapaz nada esquecível. A aura cristã que o rondava era uma espécie de sample entre Pôncio Pilatos e Maria Madalena. Um ar convidativo e intimidador de quem é perfeitamente capaz de ser imponente e feliz. Era alguém que aparentava por toda a eternidade seguir necessitado por algo irreal, inexistente e impossível. 

Sua voz calma qual suave melodia, seu sorriso constante e sincero, que enrugava os cantos dos olhos e fechava as feridas do doído coração da nossa heroína. Era inexplicável o quanto aquele rapaz pudera tocá-la tão profunda e repentinamente. De surpresa, a onda de ternura que jorrava de seus gestos inundou todo o espaço e afogou todas as angústias como se mortas tivessem que ser.

A heroína da vez não passa de quem vos fala! Mas e o herói? Descreva-se. 

Risonho como uma criança que adentra ao parque de diversões sem medo e com balões.

Agradável, doce tal qual o orvalho de uma manhã de primavera. 

Feliz. 

Adorável, suas linhas inspiram a mais pura calma e afeto. 

Entre tantos outros, sua presença se tornara a única realmente importante. 

Lindo. Seus perigosos olhos esguios e amendoados fariam qualquer desavisado se perder. 

É aí que termina a história. 

Simples, mesmo que não soubesse, o destino quebrou a quarta parede e enfiou pela fresta um corpo humano de espírito enobrecido pela singeleza protocolar das sociedades filantrópicas. Entre memes esquecidos, entrevistas, calcinhas, cachorros alemães e expectativas frustradas de ambos os lados, construiu-se na heroína um sentimento de paz tão profundo que há muito não existia. Ressurgiu a paz ao lado do malfadado rapaz. Sem direção, a divagante heroína seguiu por estradas pouco iluminadas e ladeadas por inconstâncias desesperadoras, até encontrar a profunda paz na voz brilhante de um jovem poeta. E o que seria a poesia além de um braço que toca o ponto mais profundo da alma. E ele tocou. Mudou o coração. 

O rapaz ainda busca nos cantos traços de seus amores. Se apaixona por gotas de chuva que se esvaem pela mão. Se doa a o fascínio dos intocáveis. E sofre. Mente para si ao pensar que se libertou do sonho de infância de subir alto demais para encostar no céu. E é lindo. É puro. Estranhamente natural. Gosta de abraços. E seus abraços são como um cobertor que protege os pés daqueles demônios que vivem debaixo da cama. 

Ao ouvir seus passos, a solidão foge desesperadamente. A heroína conhece isso. Sabe que isso é o que realmente vale no mundo. Ter ao lado de si quem realmente importa, com os laços da amizade se apertando a cada segundo. Aristóteles teria que estudar o fruto que amadureceu tão rápido ao vigésimo segundo galho da maior árvore da cidade. Ele é da poesia, ela é da prosa. Ele é do passado, ela é do futuro. Ele não conhece a si, ela não conhece ninguém. Ele escreve livros, ela coleciona. Ele é do oeste, ela é do leste. Ele não confia em si, ela não confia em nada. Mas confiou nele a ponto de não ter planos. E ele parou. Olhou pela janela. Puxou o ar. Estufou o peito. Agarrou-se no parapeito acinzentado. Ousou ouvi-la. Teve a audácia de ouvi-la. Absurdo completo. Inaceitável. Agora ela não quer mais que ele se vá. 

Milhões de voltas que a vida dá, giramos em torno de nós mesmos buscando um porquê, uma razão de existir, uma peça rara que nos dê o tato e sustente o fato de que almas puídas não andam sozinhas. Mas a fé de que não estaremos sozinhos ao atravessar a ponte é tão poderosa que o generoso universo se dispõe a nos presentear com fiapos de alegria em forma de gente. Como Catarina, ele existe e brilha tal qual a estrela do oeste. 

Desliguem as luzes, acendam as lamparinas, desçam as crianças, queimem as lareiras, esperem na largada, guardem a coragem e o coração. Ele está falando. Ao lado dele a solidão é mero facho de luz se apagando no belo horizonte. 

Anjo que vive na estrela, fique sempre por perto. 

Amém. 

EstrelaWhere stories live. Discover now