Capítulo 35

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– Hora do filme! – gritou alguém. Para grande constrangimento de Kyoshi, todas as Valquírias da propriedade se agitaram de forma barulhenta.

Kyoshi estava exausta devido aos ferimentos e por ter ajudado a sustentar a casa enquanto procuravam um construtor disponível no Lore que cuidasse dos estragos. Quase não conseguira se arrastar até o quarto de Rangi para que pudessem curar uma a outra. Mergulhou na cama da vampira, ecaixando-a sob o braço por alguns minutos e quase adormeceu com ela deitada sobre seu peito.

Agora observava tudo, vigilante, com o braço apertado em torno dela, desejando ter uma arma, enquanto todo mundo surgia no quarto de Rangi vindos de todos os cantos da casa.

Algumas trouxeram pipocas, embora ninguém estivesse disposto a comê-las.
Elas se empoleiraram nos peitoris das janelas, no topo do guarda-roupa e uma
até pulou para junto dos pés da cama depois de um sibilo forte ao ver as pernas de Kyoshi.

Kyoshi achou perturbador que todas se mostrassem indiferentes em relação a tudo aquilo. Ali estava uma Lykae deitada com a mais jovem delas nos braços, em seu próprio lar. Na cama dela.

Esperou que elas percebessem isso a qualquer momento e a atacassem.

Estava mais fraca do que nunca, e elas a cercavam como um enxame. Korra e Asami tinham se ausentado de propósito. Asami voltara com o vídeo, mas, pelo visto, ficara tão abalada com algo que acontecera no clã que tornou a sair de imediato. Korra a acompanhou. Era inacreditável, mas Kyoshi quase se sentiu aliviada quando Wroth chegou ao quarto com Myst, mas não hesitou em retribuir o olhar de poucos amigos do maldito.

Pouco antes de passarem o vídeo na televisão de Rangi, ela ligou o seu
“ultrapassado” iPod para não escutar nada, enterrando o rosto no peito da Lykae nas “partes mais assustadoras”.

Ao contrário dos outros, Kyoshi não tinha problemas em se desligar do que se passava na tela para pensar em tudo que aprendera, pois já vira o vídeo inúmeras vezes. Ao assistir pela primeira vez, Kyoshi começou no ponto onde Demestriu aparecia, pois fora nesse momento da ação que Jinpa o ligara. Mas Kyoshi conseguiu retroceder as imagens e viu Demestriu nas horas e até mesmo nos dias
anteriores à chegada de Rangi. Acompanhou Demestriu olhando pela janela, levando as mãos trêmulas à cabeça e delirando de loucura, tal como acontecera com a Lykae.

Balançou a cabeça. Não sabia o que pensar em relação a tudo aquilo. Como
conciliar seu passado e suas perdas com o que poderia ser descrito como um breve lampejo de compaixão? Kyoshi compreendeu, ali com Rangi, que não precisava descobrir a resposta para isso. Pelo menos, não por ora. Juntas, elas chegariam lá.

Esqueceu as reflexões e analisou as reações das Valquírias enquanto viam o
filme. Riram ruidosamente com o fato de Rangi, uma vampira, ter ficado assustada com o sangue no chão. Durante a luta, ficaram tensas e se inclinaram para a tevê, arregalando os olhos de forma exagerada quando Rangi estilhaçou a janela.

– Que coragem! – murmurou Atuat, obtendo a concordância das outras,
embora nenhuma tivesse tirado os olhos da tevê.

Em certo momento, Nïx bocejou e disse:

– Já vi essa parte.

Ninguém se deu ao trabalho de perguntar como fizera aquilo. E, quando Demestriu disse a Rangi que estava orgulhoso, algumas choraram, fazendo com que os relâmpagos cruzassem o céu.

A prova de que Furie estava viva foi recebida com aplausos. Kyoshi não
estragou a festa delas e preferiu não contar que, naquele exato momento, Furie deveria estar rezando à grande Freya, implorando que a deixasse morrer.

Quando o vídeo terminou, Rangi tirou os fones e olhou para os olhos de Kyoshi. As Valquírias se limitaram a acenar e saíram do quarto, com Nïx prevendo que A morte de Demestriu iria vender mais no Lore do que As aventuras de um Goblin em Paris.

Enquanto saía, Atuat resumiu aquela que parecia ser a atitude do restante do coven:

– Se Rangi quer a gigantesca Lykae a ponto de derrotar Demestriu, então
merece ficar com ela.

~~~◇~~~

Só Hei-Ran permaneceu no quarto.

– Você não tem de decidir isso agora, Rangi. Só não me faça nada de que venha a se arrepender pelo resto da vida.

A vampira balançou a cabeça, triste por ver o sofrimento de sua mãe, mas muito determinada.

– Sempre achei que tudo tinha a ver com as minhas escolhas, mas não é assim – disse Rangi. – As escolhas são suas. Você pode escolher entre me aceitar com ela ou eu posso ir embora.

Kyoshi colocou a mão dela entre a sua, expressando seu apoio.

Hei-Ran se empenhou em exibir um semblante sereno, e seu rosto parecia
feito de pedra, mas atrás dela estourou uma descarga de relâmpagos, traindo
seus esforços. Ela estava arrasada com a situação.

– Mamãe, eu sempre vou correr para os braços dela.

Contra essas palavras não havia mais nada a fazer, nem argumentos a usar, e
ambas sabiam disso.

Finalmente, Hei-Ran empinou o queixo, colocou os ombros para trás e encarou
Kyoshi.

– Nós não reconhecemos essa parceria – ela quase cuspiu a palavra –, ou sei lá como os Lykae chamam uma união. Vocês têm de trocar votos. Estou particularmente preocupada com o voto em que a Lykae jura que não vai se aproveitar dessa união para prejudicar de algum modo os covens.

Kyoshi respondeu, com ar de ofendido:

– A Lykae tem nome. E se você quiser que Rangi partilhe essa cerimônia, nada me deixará mais feliz. Farei esses votos.

Hei-Ran encarou Rangi com um último olhar suplicante. Quando Rangi balançou a cabeça lentamente, ela ordenou:

– Não a teletransporte para cá mais do que o estritamente necessário. – Ao sair do quarto, murmurou: – Este coven está indo para o inferno logo no meu mandato.

– Teletransportar… É isso! – disse Rangi. – Agora nós vamos poder visitá-las sempre que quisermos. Que máximo! Podemos passar alguns fins de semana aqui? E o Carnaval? E vir para o festival de jazz? Uau, estou louca para ver você comendo lagostim!

Com uma expressão de dor, Kyoshi retrucou:

– Tomara que haja alguma chance de corrermos através do pântano com a mesma alegria que sentimos na floresta.

De repente, o rosto da vampira ficou muito sério:

– Não sei se quero ver você circulando por aqui, no meio das minhas tias lindíssimas.

A Lykae riu ao ouvir esse absurdo, mas logo fez cara de dor quando seus ferimentos não quiseram cooperar.

– Rangi, você é muito melhor que elas. Não, não discuta isso. Eu tenho olhos e sei ver muito bem. – Passou-lhe o polegar pela bochecha. – Sei que nenhuma delas uiva tão bem para a lua como a minha pequena fada.

– Sua lobisomem atrevida! – ralhou Rangi, inclinando-se para beijá-la nos lábios, mas elas foram interrompidas por um grito que vinha do andar de baixo.

Enquanto olhavam uma para a outra, Hei-Ran gritou para alguém que não se via:

– Como assim? O que você quer dizer com “acaba de chegar uma conta de cartão de crédito com mais de seis dígitos”?

...

Desejo Insaciável (Rangshi)Onde histórias criam vida. Descubra agora