Prólogo da primeira parte

4 0 0
                                    

As calças do rapaz no palco eram muito apertadas, mas ele surpreendeu a física e conseguiu se abaixar pra pegar um violão. Testou ali o som, no meio da microfonia ele encorpou a voz cantando o verso: "Ô, cambada de biscate!" Todas aquelas meninas de vinte e poucos anos usando roupas bem coloridas, apertadas, passaram a dançar. Os caras de barbas e cabelos repetidos passaram a secar com os olhos a tal dança.

Ninguém ali era pobre, mas no camarote da balada eram ainda menos pobres. Numa mesa que cabiam dez, doze pessoas e uns quatro ou cinco baldes de cerveja e combos de vodka, um agroboy falava sem parar. Seu papo cativava a mesa menos por talento e eloquência do que por riqueza, influência e também pelo fato estar cercado de funcionários, amigos interesseiros e puxa-sacos. Ali ele era o Léo, mas o sobrenome Bacinello era o que tinha o respeito, aquele respeito de gente que só respeita o dinheiro. O cantor não parecia fazer efeito naquela mesa, pois as histórias de iate e Dubai de Léo Bacinello tinham que parecer mais divertidas que qualquer música ou bebida. Danúbia já tinha ouvido tudo aquilo várias vezes, e estava presente em algumas. Gostaria de não ter estado, pelo menos acreditaria nos pontos que ele exagerava. Ela bebericava algo de gin que nem lembrava o que era, mas já estava aguado. O cabelo liso loiro impecável, o vestido até o joelho, unhas de gel, brincos de argola grandes, cílios, rímel, make, mas por dentro da barriga uma revolta. Ela exagerou no bisacodil e lá pelas onze da noite decidiu que era hora de ir embora.

- Amor. Vamos embora! - Disse pra Léo. Ousou interromper o namorado em seu monólogo aos puxa-sacos.
- Eita, mas já tá pedindo pra embora? Bateu recorde!
A mesa gargalhou como numa reação ensaiada. Comentários voaram "ela que manda". "Hoje não tem". Danúbia nem pensou em ser simpática, estava prestes a presenciar um desastre. Depois de um minuto, Danúbia segurou a bolsa, passou a mão na testa e tentou novamente. Desta vez bem baixinho:
- Léo. Estou passando mal. Vamos embora, já foi bastante.
- Vê se fica quieta, eu estou conversando. - Respondeu bem no ouvido.
Não iria esperar, simplesmente saiu da mesa. Nos primeiros passos, sentiu ferver dentro da barriga. Ela prendeu os glúteos e quase arrastando o passo, foi em direção ao banheiro. Mas era uma vida até lá. Agora perto do palco, atravessando a pequena multidão que erguia bebidas e cantava. O som era alto, ninguém percebia o seu sufoco e deu uma vontade de rezar. Enfim, o banheiro era logo ali. Viu mais de perto o cantor, a visão de sua calça apertada provocou ainda mais o desconforto intestinal. Tudo bem, o banheiro estava chegando. Só precisava pedir licença pra algumas pessoas, mais alguns metros e estaria melhor. Lá dentro, tudo ia ser resolvido, voltaria à mesa como se nada tivesse acontecido. Ninguém ia perceber. Mas um cara no meio da caminho notou a presença de Danúbia e, bêbado, fixou os olhos nos dela. Ela pediu licença mas o cara soltou um sorriso e abaixou pra tentar falar no seu ouvido. Não havia tempo pra dispensar ninguém, usou o braço direito pra empurrar o cara pela barriga. O movimento foi brusco demais. Danúbia se desconcentrou e depois de alguns passos desequilibrou do salto mas conseguiu evitar a queda. Só que, nesse esforço, a catástrofe aconteceu. Uma onda quente se derramou dentro de sua calcinha e escorreu pelas pernas. A guerra estava perdida. Enquanto todo mundo começava a perceber, foi a deixa para que ela corresse finalmente até o banheiro e batesse a porta com força. Estava muito suja. Começou a chorar muito.

A música parou, houve uma movimentação de burburinhos. Risadas incrédulas.
"Era bosta pra todo lado" diziam. Houve quem vomitasse. O cantor de calça apertada cobriu o nariz com a gola da blusa, assim como todos. Alguns taparam o rosto com o chapéu de boiadeiro. Algumas moças de sandália acabaram pisando nas fezes e sujando os dedos. Em menos de 20 minutos ninguém dançava. Na pista, havia somente algumas que limpavam o chão e o cheiro forte de água sanitária.
Danúbia, que naquela comunidade era praticamente uma princesa criada num palácio, alimentada e educada por tudo que existia de melhor, não merecia protagonizar semelhante desgraça. Meu Deus, Danúbia. Ela foi identificada no banheiro e ajudada por uma funcionária da boate que mostrou um outro pequeno banheiro onde era possível que ela tomasse um banho.

Enrolada em uma toalha, com os olhos vermelhos e derretidos da maquiagem: foi assim que Léo a encontrou.
- Que desgraça, véi. Que desgraça, por que você tem que fazer isso comigo?
- Porra, Léo. Eu tava ruim, eu falei.
- Além de egoísta, você é burra. Por que não foi no banheiro antes? Sua puta do caralho.
- Nossa, Léo...
- Tá todo mundo rindo de mim. Todo mundo saiu rindo. Todo mundo viu que você era do camarote, que tava comigo. E agora você tá famosa. Danúbia, acabou! Tá acabado!
- Não, Léo. Pelo amor de Deus - recomeçou o choro.
-Você arruma um jeito de ir embora. Tchau.

O Camaro acelerou na rua e partiu, deixando Danúbia sozinha. Os últimos funcionários da boate pediram um carro pra levá-la. Não só a noite foi manchada de humilhação, a reputação, o coração e alma de Danúbia também. No carro, ela olhava pro horizonte e havia uma madrugada cinzenta. Ela apontou a primeira ponta de luz e pensou "Não mereço isso. Não mereço isso." O sol já ia nascendo pra mais um dia no interior.

Continua.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jan 12 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Era Uma Vez No InteriorOnde histórias criam vida. Descubra agora