XVII

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Silver encarava o chão, evitando fazer contato visual. Nenhum de nós dizia nada, nem mesmo nos cumprimentamos, esperando um som aleatório surgir para nos fazer começar uma conversa.

Respirando fundo, começo a falar, esperando receber respostas vagas, ou até mesmo nenhuma.

- Como está o seu braço?

Ouvindo a pergunta, ele tocou o local enfaixado com cuidado, proferindo baixo na direção do microfone, os olhos ainda virados ao piso da prisão:

- Dói muito, não consigo mexer demais. Mas... está melhorando, sabe?

Voltamos a ficar no silêncio, sem saber como começar um assunto melhor. Já faziam alguns dias que Silver estava preso, e mesmo assim, não queria deixá-lo para trás. Apesar de tudo, ele ainda é o meu amigo.

- Por que você veio me ver? - questiona ele, finalmente encarando-me com os olhos tristes.

- Porque somos amigos - digo simplista.

- Mas eu tentei matar seu namorado. Eu tentei matar você.

Dou de ombros, esboçando um sorriso calmo.

- Eu sei. Mas eu acredito que haja bons motivos por detrás disso.

Ele nega com a cabeça, batendo uma das mãos na mesa do lado em que estava.

- Shadow, não tem! Eu fiz isso por pura ganância!

Me inclino na direção do vidro que nos separava.

- Silver, eu vi o vídeo. Lá, você disse alguma coisa sobre os seus pais. Não foi por ganância, eu sei disso. Se somos amigos, me conta o verdadeiro motivo.

Sua expressão se suavizou, e ele voltou para seu lugar, pensativo. Novamente, tudo se aquietou, até ele ceder e começar a falar em um tom quase não audível.

- Eu não me lembro de tudo. Mas eu sei que, quando eu era pequeno, meus pais falavam sobre uma tal família que os destruiu de alguma forma. Eles diziam que roubaram a nossa fama, seja lá o que isso signifique. Certa noite, eles me mandaram ficar quietinho em casa, sozinho. Quando eu perguntei o motivo, eles só me mostraram uma foto com três ouriços azuis e disseram que iam dar um fim neles, pro nosso próprio bem. Eu entendi o que aquilo significava, mas eu não liguei de meus pais quererem matar outra família, eu já tava acostumado com coisas desse tipo vindo deles. Quando eu acordei no dia seguinte, eles já estavam em casa, contentes por ter dado tudo certo. Mas... à tarde, passou no noticiário sobre uma família assassinada - a que eles mataram na noite anterior -, assim como disseram que salvaram a criança que estava na barriga da moça grávida. E as pistas levavam diretamente até nós. Naquele dia, eles disseram que quando eu ouvisse sons do lado de fora, era para me esconder embaixo da cama. E eu fiquei lá quando escutei as sirenes, morrendo de medo e olhando diretamente para a foto com a família de Sonic. - Ele suspirou, criando coragem para continuar, a voz tremendo. - Quando me acharam, eu estava envolto em lágrimas, apertando aquela única foto. Os meus pais saíram de casa porque... - Engolindo em seco, continuou, sua voz abaixando mais, chorosa. - ...porque eles se mataram enforcados em uma árvore.

Eu estava sem reação, o coração apertado por uma tragédia daquele porte. Não sabia como responder, angustiado por sua história acabar de forma tão horrenda.

- Depois disso - prossegue ele -, prometi que vingaria a morte deles. Se a culpada de tudo isso era aquela família, eu acabaria com o último membro ainda vivo dela. Eu não esperava achar o Sonic no orfanato, mas quando eu descobri que ele era mesmo o filho daquelas pessoas, eu simplesmente... quis acabar com ele pouco a pouco. Pelos meus pais.

- Silver... - Nossos olhares se encontraram, e uma vontade incontrolável de abraçá-lo me atingiu, o vidro nos impedindo de tocarmos um no outro. Coloco uma mão ali, demonstrando toda minha compaixão. O garoto põe igualmente sua mão no local, deixando-a na mesma posição que a minha. - Eu não fazia ideia...

- Eu sei - soltou ele, tristonho. - Eu nunca quis meter você nisso. Sempre fui verdadeiro com você, sou até hoje. Mas... tinha medo de envolver você demais, de acabarmos ambos tendo um destino ruim juntos. Me desculpa por ter me deixado levar pelo meu coração e me permitido sentir coisas por você.

- Não - nego, maneando a cabeça simultaneamente. - Me desculpa eu por nunca ter percebido e correspondido aos seus sentimentos. Se eu tivesse feito isso, talvez você não estivesse aqui agora.

Silver se afastou, tirando a mão do vidro para limpar as lágrimas que escorriam. Ele parecia perdido, mirando as paredes ao invés de meus olhos. Todos seus movimentos estavam lentos, doloridos, deixando-me no auge de preocupação.

- Eu sou horrível, não sou? - questiona, voltando os olhos marejados para mim. - Eu destruí tudo, machuquei você e as pessoas que você ama... Você deve me odiar tanto agora. Eu dificultei toda a sua vida!

- Não! - corto-o, a feição igualmente triste. Vê-lo a chorar partia-me o coração, um golpe forte o atingindo com tudo a cada lágrima que o ouriço derramava. - Você não estragou nada, está tudo bem! Eu não odeio você, Silver, eu jamais conseguiria odiá-lo. Você é o meu melhor amigo, eu só quero proteger você dessas dores. Você não tem culpa de ter sofrido tanto no passado com coisas que não entende.

- Shadow - fungou -, esse é o problema. Eu não quero ser o seu amigo. Mas o seu coração já pertence a outro alguém, ele nunca vai ser meu a não ser que o Sonic morra. Se ele tivesse realmente morrido aquele dia, você se permitiria gostar de mim?

Congelei, sem saber como responder à pergunta. Sua face mostrava nitidamente a ansiedade que estava, sedento pela resposta. Avaliei-o por completo, desde sua dor estampada no rosto até os momentos mais aterrorizantes que me fez passar. Eu conseguiria amar um monstro?

- Na verdade - começo, sorrindo gentilmente -, se você tivesse percebido um pouco mais cedo, eu já era seu.

Um milhão de expressões perpassaram sua face naquele instante, intercalando entre todas elas até parar em uma: esperança.

- Quer dizer que... se o Sonic não tivesse sobrevivido, você e eu...?

Seu olhar cintilava, preso ao meu. Deixei escapar um suspiro que prendia, concordando com a cabeça.

- Cada dia que passava, eu enxergava mais você. Não havia ninguém melhor para mim, ninguém que me fizesse sorrir tanto, experimentar tanto, gostar tanto. Estar do seu lado era esplêndido. Se eu estivesse triste, você levantava meu astral; se estivesse cansado, você me ajudava a descansar; se estivesse mal, você me mostrava um lado otimista para continuar vivendo. Você era a única pessoa que eu podia confiar com a minha vida. Se você tivesse arriscado flertar, me contar seus sentimentos ou até mesmo ter me beijado algum tempo antes do desastre, nem a aparição de Sonic seria capaz de nos separar.

Silver não se movia, incrédulo. Ele parecia uma bolinha, encolhido na cadeira em que estava, soluçando. Realmente, parecia aquele antigo Silver que eu conhecia: apenas uma criança feliz, que ignorava todo seu passado frustante para seguir adiante, sempre sorridente, mas ainda repleto de dores que se esforçava para esquecer.

- Eu vou te ajudar - continuo, percebendo que ele não diria mais nada. - Vou investigar mais a fundo seu passado e descobrir tudo que você não sabe ou não consegue lembrar.

Dito isto, me levanto, ajeitando as minhas roupas e lhe lançando um sorriso compreensivo.

- S-Shadow - gagueja ele, finalmente se movendo, as mãos tremendo. - O que você vai fazer? Não faça isso... - Deixando-o lá, virei de costas, seguindo meu próprio caminho para sair dali. - Shadow, não! Shadow! - gritou ele enquanto atravessava a porta para fora do lugar, disposto a conseguir respostas.

Eu não tardei em chegar na casa de Sonic, abrindo a porta casualmente. Sabia que, depois que Silver foi preso, o ouriço azul já se sentia tranquilo para deixar as portas destrancadas, assim como eu.

Quando adentrei, Sonic elevou os olhos para mim, largando o aparelho celular e se sentando no sofá onde estava, animado.

- Shadow, você voltou!

- Se arruma - solto, o deixando com uma expressão confusa no rosto.

- Hã? Pra quê?

Determinado a conseguir as respostas necessárias, sorrio de canto, cruzando os braços sobre o peito.

- Nós vamos para o orfanato.

Os Mil e Um Você (Volume 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora