"Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre ator que por uma hora se espavona e se agita no palco, sem que depois seja ouvido; é uma história contada por idiotas, cheia de fúria e barulho, que nada significa" – Macbeth.
Ela não queria levar muita coisa, nem tinha como na verdade, apenas o necessário. Enquanto arrumava a sua mochila, Roberta lia e relia as cartas e os documentos. "[...] 'Kel'emé wur khlowgtee've rhm'. 'Ele (que) do céu veio quando precisávamos mais'. [...] Essas foram uma das poucas frases que encontrei que estavam em outra língua que não fosse aborígeno da região, pelo menos que eu saiba. Demorei um tempo para traduzir, mas com ajuda de alguns documentos antigos da região, eu consegui. O que achei curioso é que é, aparentemente, eles usaram a mesma palavra para "coisa", "criatura" (Kel), para se referir a essa divindade que veio do céu e depois foi morar no fundo do rio".
Fazia quase seis meses que Francisco escrevia empolgado sobre uma tribo ao nordeste do Amazonas. Eles pareciam cultuar o monstro aquático Mboi Tu'i da mitologia tupi-guarani, mas muitas coisas não faziam sentido. "Por que eles adorariam um monstro, ao invés de um dos seus deuses? O mais estranho: não há relatos de um panteão, é como se eles apenas se dedicassem ao monstro. Encontrei alguns trechos sobre sacrifico humano ao Mboi Tu'i, além da descrição do próprio monstro, que não é muito clara, talvez até confusa se comparada com as lendas". Francisco também mencionou relatos atuais de uma cobra gigante nadando nos rios ou se rastejando pela floresta, deixando sulcos no chão e derrubando árvores por onde passava. Concidentemente começaram a surgir muitos casos de desaparecimento naquela região. "Os locais começaram a associar os sumiços com essa cobra descomunal. Isso não me espanta, já que boatos de uma cobra gigante é muito comum por lá (lembra do filme Anaconda?), mas ainda assim, vale a pena ir estudar essa tribo de perto". E assim, gradualmente isso virou a obsessão dele.
Francisco e Roberta se conheceram ainda na faculdade, enquanto ele fazia Antropologia e ela História, ambos na Universidade de Minas Gerais. Eles até chegaram a namorar por um tempo, e mesmo depois que terminaram continuaram grandes amigos. Francisco Ramon se formou, especializando-se em povos indígenas e estudar essa tribo juntamente com o seu culto seria a sua chance de ganhar algum reconhecimento! Já Roberta Aliena da Cunha se formou em História, se mudou para Curitiba e depois de alguns anos se decidiu por fazer um mestrado na área de Antropologia, sendo por isso, talvez, que se interessou tanto pelas cartas de Francisco e ficou tão animada com a ideia de ir até essa tal tribo esquecida. Mas a bem da verdade, no fundo ela estava mesmo mais a procura de seu amigo. Desde o mês passado Francisco escrevia desmotivado, mas não apenas com o seu trabalho, e sim com toda a realidade que o cercava e permeava o mundo. "Estava notando as estrelas essa noite. Trilhões de bilhões delas estão lá fora, mas nem 1% conseguimos ver daqui (e olha que onde eu estou o céu noturno é mais estrelado!), muitas delas já morreram há séculos, e o que chega até a gente é apenas um fio do que restou da sua luz e que ainda está viajando no espaço, persistente e atrasada, mas no tempo dela. O Universo é tão gigante, tão vasto e ainda assim somos presunçosos o suficiente para achar que estamos sozinhos nele. Narcisistas o suficiente para acreditar que somos importantes e que o universo gira ao redor de nós. Somos apenas o menor grão de areia dentro de uma ampulheta imensurável. Nada que chegamos a fazer tem relevância". Francisco nunca foi muito ligado à filosofia ou ao existencialismo, nunca questionou a vida ou se demonstrou desanimado em relação a nada, principalmente quando se tratava de seus estudos.
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A Cidade da Serpente
Short StoryO quanto será que não sabemos sobre a nossa própria existência? O que será (e o quanto será) que não conhecemos, ou entendemos, da nossa própria realidade e nosso próprio lar? Francisco Ramon, um jovem antropólogo e entusiasta das culturas ocultas...