PARTE I

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Acordo com o costumeiro apito suave da pressurização nos meus ouvidos, o cheiro forte do desinfetante invade as minhas narinas até o cérebro, o odor é familiar mas incomoda por tamanha repetição da mesma fragrância. Lentamente as luzes vão acendendo em uma velocidade confortável para que meus olhos recém despertos enxerguem sem que uma dor lancinante de desconforto fotossensível me ataque. O pequeno robô termina seus afazeres de limpeza com um ronronar confortável do motor ultra-dinâmico em seu compartimento interno, seu holograma em formato de barra de carregamento está em 94%, me informando que a limpeza e purificação está incompleta, o que significa mais alguns minutos justificáveis na cama.

Por comando mental a tela de vidro do holotablet surge, vinda da lateral de meu leito até a frente dos meus olhos, a luz gradualmente acende equivalente às luzes ambiente do alojamento. Pela janela uma paisagem artificial desponta, o mar lilás de águas espessas do planeta Noui, acima do imenso oceano, as três luas decoram, tímidas, o céu arroxeado. Apesar da distância de um dos meus amados planetas já visitados, saber que a paisagem artificial tremulando ali na tela-janela é gerada de gravações ao vivo me permite uma sensação confortável e diretamente ligada às memórias guardadas, momentos que vivi por lá. E do grande amor que deixei para trás.

— Capitã Kyllio? Espero, ansiosamente, que esteja acordada. A WESP está recebendo uma solicitação de ajuda no sistema planetário mais próximo. — A voz familiar do meu auxiliar torkiano ressoa através do comunicador, preso ao meu uniforme, que repousa sobre minha mesa abaixo da janela. — Alôôô?

Mantenho-me em silêncio após ver que a barra de carregamento do robô já estava em 98%, teria aproximadamente mais dois minutos e meio de paz, estes, em que permitirei que minha mente navegue tranquilamente até a noite 456 nas plataformas orlares de Noui, em que ele estava belo como a noite estrelada de constelações visíveis de Torkia, seus olhos transmitiam todo o seu amor, profundo como um nativo daquele vasto planeta roxo devia expressar a conexão de almas. As mãos de Osiah tocavam a minha pele fina de terrestre. Ambos, propriamente ditos pela biocomposição, humanos, mas nascidos e crescidos em lugares distintos. Osiah era tão nouiano que pouco se via de humanidade terrestre, vinda dos ancestrais, em suas ações, feições e formas de amar, e eu me apaixonei por isso, sua singularidade. O sorriso dele em minha memória se desfaz e seu rosto de desgosto repleto de lágrimas toma seu lugar. Meu coração acelera com uma dor que chega a ser física, meu peito explode em arrependimento, este, que justifico a mim mesma, novamente, a cada manhã: Eu precisava ir e ele também não me escolheu.

— Ative a conexão com Gestart. Alô? - Falo e a IA me conecta com o torkiano.

— Ah! O Eterno te abençoe... Você acordou capitã, já estava transpirando o suficiente para reviver o lago seco de Monterok. Compareça na ponte, sim?

— Chego em cinco minutos, Gestart, espere por mim.

— De fato, senhora, de fato.

O uniforme se fecha em meu corpo e as botas são calçadas em segundos pelas nanopartículas ajustáveis. Logo me encontro caminhando apressada pelos corredores movimentados da WESP. Tripulantes do setor de ciências espaciais, engenharias, médicos, soldados e pilotos de reserva passam apressados rumo aos seus afazeres. O letreiro neon com a frase "Somos WESP! Seguimos pelo caminho das estrelas!" se repete em vários monitores espalhados pela esplendorosa astronave que passeia pelo tecido do espaço-tempo.

Adentro a ala da ponte, na tela principal uma chamada está pendente e conta em espera há dez minutos.

— Libere a linha de voz, Gestart.

O torkiano faz um símbolo de círculo no ar com um de seus quatro dedos e o operador de ligações da ponte permite a chamada.

— Saudações. Aqui é a capitã Kyllio, da WESP, astronave oficial ativa da Convergência Galáctica, Setor...

— Não temos tempo para burocracias, capitã. — A voz embargada inunda a ponte da WESP.

— De onde você fala? — Pergunto.

Os bips dos computadores da ponte são o único som existente durante o intervalo entre minha pergunta e a resposta vinda do outro lado da chamada.

— Eu não sei. Sou de Noui. Mas estou vagando há oito dias nesta nave de emergência. Nenhum outro canal me respondeu, apenas vocês. Lembro da partida da WESP, é uma honra falar com a senhora.

— O que está fazendo em uma nave de emergência, nouiano?

— Nosso planeta foi atacado, senhora... — Ouço sons de choro seguido por um soluço profundo. — Eu vi... Meus pais e irmãos sendo mortos nos campos de nossa fazenda. Exatos quinze dias após a partida da senhora e sua tripulação. Não sabemos quem são os invasores, apenas evacuamos após a chegada ofensiva, repleta de mortes, mas muitos ficaram. Perseguiram as astronaves, a minha foi abatida. Apenas poucos fugiram nas pequenas naves de emergência. Cada uma com dez dias solares terráqueos de mantimentos. Pelos cálculos do computador o tempo de viagem de vocês até mim seria de um pouco mais de sete dias solares terráqueos... Estou fadado ao mesmo destino miserável de meus familiares. Noui já deve ter ruído nas mãos de seus invasores sedentos por guerra. Mas como último pedido, tentem ajudar Noui, ajudem meu planeta natal. Ajudem, ajudem, ajudem...

— Que o Eterno tenha piedade! — Gestart está pálido, mas sua postura de vice-capitão está firme.

— Mude o curso, encaminhe a WESP de volta para Noui.

— Capitã, acredito que esteja sendo levada pelas emoções... O Osiah... — A piloto retruca.

— Sua desobediência será alinhada após a missão. Iremos socorrer um planeta afiliado da CG. E a minha vida pessoal não é da sua alçada, piloto. Assuma seu lugar nesta nave.

Sento na cadeira de capitã e a WESP se estaciona na direção contrária a anterior.

— Ainda está na linha, nobre nouiano?

— Sim, capitã.

— Sinto muito pela sua família e destino. Comunicamos a todas as naves próximas sobre sua localização. Eu e a WESP desejamos de todo coração que você encontre mais alguns anos de vida e cure sua alma. Iremos para Noui.

— Obrigado, capitã. Eu apenas queria que se pudes...

— O que?

Novamente o silêncio. O tempo passa e meu coração já está no planeta roxo.

— Perdemos a conexão, capitã. Aconselho partir, não teremos contato com ele novamente. — O operador de ligações diz tranquilo. Eu apenas aceno positivamente com a cabeça e respiro fundo antes do comando.

— Voar.

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⏰ Última atualização: Mar 04, 2023 ⏰

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