Epílogo

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snap! snap! snap! era o único ruído que se ouvia dentro do pequeno quarto mal iluminado.

Encostado na porta que entrava no cômodo, estava um homem de farda cinza, com a mão no batente olhando cuidadosamente o trabalho da perícia. O subdelegado ainda segurava o copo de plástico com café meio quente na mão quando ouviu de longe o som de passos. O barulho característico de saltos baixos, dando a certeza de que ele estava prestes a sair de cena.

- Doutora - disse com uma voz um pouco desanimada, não era fácil encarar uma cena daquelas.

- O legista já passou por aqui?

- Ainda não, está esperando a perícia terminar de documentar para mexer na vítima.

- Encontrou documentos dela?

- Já sim. Joana Pereira, 26 anos, morava aqui com o marido. Ainda estamos tentando localizar, mas segundo os vizinhos, não houve briga e nem discussão nos últimos dias.

- Algum outro familiar apareceu?

- A mãe, já enviamos para a delegacia, estava bem nervosa e não era bom estar aqui quando retirássemos o corpo.

- Os vizinhos disseram mais alguma coisa, pessoas estranhas na casa, nas redondezas?

- A moça era manicure, recebia muitas clientes em casa, difícil saber se havia alguém estranho.

- Está bem, vou voltar para a delegacia e acompanhar de perto a conversa com a mãe da vítima, se o marido aparecer, quero ele lá o mais rápido que puder.

- Sim senhora.

Enquanto saia da casa modesta, o legista chegava para liberar o corpo para o IML e dar início ao processo de laudo, apesar de saber que o laudo só seria entregue daqui 30 dias, quanto mais rápido começar, os 30 dias seriam menos longos. Em casos assim, Dra. Aline desejava que fosse como nos países longe do Brasil, onde em menos de 10 horas já estava com o laudo em mãos. O caminho de ida até a delegacia foi curto, mas ainda assim seu superpoder também era seu carma, conseguir lembrar detalhes de tudo era o que a fazia perder suas noites de sono. Bastava olhar uma vez algo e se lembraria para sempre. Maldita memória eidética. Em cada piscar de olhos, um pedaço daquele quarto vinha em sua mente. O corpo caído em posição de defesa, as pegadas sujas de sangue, a poça de sangue em volta do corpo, a pilha de roupas remexidas, o guarda-roupas aberto apenas nas roupas dela.

Parou o carro na vaga destinada a ela no estacionamento da delegacia de crimes contra mulher. Aline havia sido designada ao cargo depois de passar entre os primeiros na prova para delegado, teve a chance de escolher onde ser alocada, e escolheu a DECAM, a vaga estava disponível depois que o último delegado foi exonerado por agredir a companheira. Não era um cargo fácil, mas estava otimista quanto ao trabalho. Estava no cargo há apenas um ano, nenhum caso brutal, até agora. Havia perdido mais uma noite de sono, precisava de um café preto, sem açúcar e com boas notícias.

Desceu do carro e entrou pela porta lateral da delegacia. Todos os dias era possível ver mulheres com olhos roxos, braços com hematomas e crianças chorando, todas com a mesma queixa, companheiros que em algum momento foram agressivos, fisicamente ou verbalmente. Ainda eram poucas as que denunciavam os casos de agressão, muitos dos casos que ouvia, eram mulheres que não tinham como sobreviver sem os companheiros, criar os filhos sozinhas, ter para onde ir e como se manter. o DECAM trabalhava 24 horas por dia para tentar mantê-las ao menos vivas. Naquela manhã de terça feira, estava estranhamente calmo na sala de espera. Apenas três mulheres esperavam para ser atendidas, e duas já estavam nas baias de depoimentos. Aline pegou as pastas de arquivos na recepção e foi para sua sala, pegou sua xícara e foi para a copa encher com café. Sua cabeça começava a doer e a expectativa de uma boa notícia foi por água abaixo quando ouviu na tv da copa a apresentadora do telejornal da manhã.

Amor escrito com sangueWhere stories live. Discover now