𝚂𝙴𝚃𝙴

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    — É assim que a outra metade vive murmura Chae. — Já é o bastante para deixar qualquer um enjoado.

   Sinto-me invadido pela culpa. Sempre tive inveja de Chaeyoung, do seu talento e de todos os privilégios que ele garante, mas nunca pensei nos custos. Ela não frequentou a escola e tem poucos amigos em Palafitas. Se as coisas fossem diferentes, ela teria muitos. Sorriria. Em vez disso, a menina de catorze anos arma-se de fio e agulha e parte para a batalha com o futuro da família nas costas, afundada até o pescoço num mundo que odeia.

— Obrigado, Chae cochicho em sua orelha. Ela sabe que o agradecimento não é só por hoje.

— A loja de Salla é ali, no toldo azul. ela aponta para uma loja minúscula no fim de uma travessa, apertada entre dois cafés. — Se precisar de mim, estarei lá.

— Não vou precisar respondo rápido — Mesmo que tudo dê errado, não vou envolver você.

— Ótimo. ela agarra minha mão e a aperta por um segundo, avisando. — Cuidado, isto aqui está lotado hoje, mais do que o normal.

— Mais lugares para se esconder. digo, com um sorrisinho no rosto, mas sua voz é séria. 

— Mais agentes também.

    Continuamos a caminhada. Cada passo nos aproxima do momento em que ela me deixára sozinho neste lugar estranho. Sinto uma pontada de pânico quando Chae tira a mochila das minhas costas com gentileza. Chegamos á loja.
   Para me acalmar, murmuro para mim mesmo:

— Não falar com ninguém, não encarar ninguém. Não parar. Saio por onde entrei, o Portal do Jardim. O policial remove minha fita e eu continuo a andar.

   Chaeyoung confirma minhas palavras assentindo. Seus olhos estão arregalados, temerosos e talvez mesmo esperançosos.

— São dezesseis quilômetros daqui até nossa casa concluo. 

— Dezesseis quilômetros até nossa casa ela repete.

    Desejando com todas as forças poder acompanhá-la, observo Chae desaparecer sob o toldo azul. Ela me trouxe até aqui. Agora é minha vez de agir.

~~ 

   Já fiz isso mil vezes: observar a multidão como um lobo vigia um rebanho de ovelhas. À procura dos fracos, dos lentos, dos tolos. Só que, agora, pareço mais a presa. Posso escolher um lépido, que me pegará em um piscar de olhos; ou, ainda pior, um murmurador, que vai sentir minha presença a um quilômetro de distância. Até a garotinha telec tem vantagem sobre mim se as coisas derem errado. Assim, tenho que ser mais rápido do que nunca e ter mais sorte do que nunca. É enlouquecedor. Felizmente, ninguém presta atenção em um criado vermelho, outro inseto perambulando aos pés dos deuses.

   Volto para a praça. Deixo meus braços penderem frouxos do lado do corpo, embora estejam preparados. Normalmente esse é meu jogo: caminhar pelas partes mais congestionadas da multidão e deixar minhas mãos apanharem bolsas e carteiras como as aranhas apanham moscas. Mas não sou burro ao ponto de tentar isso aqui. Em vez disso, sigo a multidão ao redor da praça. Minha visão não está mais ofuscada pelo cénario fantástico ao redor. Enxergo além dele: as fendas entre as rochas e os agentes de segurança em uniforme preto atrás de cada sombra. O impossível mundo prateado surge mais nítido. Eles mal olham um para o outro e nunca sorriem. A menina telec parece cansada de brincar com o bicho estranho, e os mercadores nem pechicham. Apenas os vermelhos parecem vivos, cruzando aqui e ali com homens e mulheres lentos e bem de vida. Apesar do calor, do sol e dos sinais luminosos, nunca vi um lugar tão frio.

O REI VERMELHO - TaekookOnde histórias criam vida. Descubra agora