Aquele sorriso

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Apenas nós três andávamos naquela rua. Àquela hora da noite. Naquela noite de chuva. Andávamos tremendo de frio pelo meio da pista mal iluminada. Era uma rua vazia e sem saída, a única residência era um velho casarão com fama de abandonado que ficava lá no final da estrada. Já passavam das sete horas e precisávamos de lugar para nós abrigar  durante a noite. Olhei para as meninas, se eu sabia, elas também sabiam: não havia outro lugar ali perto e chuva engrossava a cada segundo. Não tínhamos escolha. Paramos na frente das imensas portas duplas de madeira escura e tocamos a campainha.

O clarão dos relâmpagos foi refletido pelos janelões do casarão que, poucos segundos mais tarde, estremeceram sob som dos trovões. Houve um resmungo das dobradiças cedendo e a porta pesada se abriu, mas ficamos paradas na entrada.

As gotas geladas da chuva escorriam pelas nossas pernas, encharcando o tapete. Entreolhamo-nos, cada uma esperava a outra tomar a frente. Apertei os olhos tentando decifrar o cenário que estava diante de mim, mas tinha zero vontade de tomar a iniciativa. Senti os dedos frios das minhas amigas se enrolarem nos  meus. Respirei fundo e entramos. Juntas. A casa era empoeirada e cheirava a mofo. Um tapete gigante, puído, cobria o chão e no teto brilhava um imenso candelabro de cristal com suas 293 luzinhas acesas. À nossa direita, sobre a mesa de jantar posta, jazia um par de castiçais acesos. Os outros móveis estavam cobertos por panos brancos. Retratos antigos decoravam as paredes. Bem à frente, uma escada central levava para o segundo andar.

O som das portas batendo às nossas costas nos assustou. Não íamos comer daquele jantar. Convidativo demais. Estranho demais. Subimos. Os degraus rangiam e pareciam prestes a ceder a cada passo. Subimos. Mais quadros. Uma armadura reluzente no topo da escada. Se em uma das mãos empunhava uma lança, a outra segurava uma espada que apontava em nossa direção, ou na direção de qualquer um ousado o suficiente para se arriscar naqueles degraus. Seguimos para o final do corredor, lá havia portas. Muitas portas. E sob o olhar desaprovador de vários rostos desconhecidos, forçamos todas elas. A penúltima se abriu. Era um quarto. Um quarto branco, úmido e frio. Na verdade, toda aquela casa era fria, então, fazia pouca diferença. Decidimos passar a noite nele. Havia dois beliches velhos, uma mesa bamba e uma janela emperrada. Era mais do que o suficiente. Eu, ainda sentindo minha roupa molhada colando no corpo, não sabia se deitava na cama ou no chão mesmo. Mas como o tecido grosso do jeans não ia secar tão cedo e o chão parecia imundo, optei pelo beliche. Parecia ser o mais confortável, porém o sono custou a vir.

Acordei sobressaltada no meio da noite com um hálito quente soprando contra o meu rosto. A voz sussurrava meu nome em meio ao silêncio da noite. Uma sombra escura pairava sobre mim. Arregalei os olhos assustada e minha visão entrou em foco. Era minha amiga. Ela estava com o rosto quase colado no meu e me encarava com olhos brilhantes, cheios de expectativa. Desgraçada. Me pediu desculpas pelo susto e disse baixinho que estava com sede, mas não sairia do quarto sozinha. Imagino que deve haver algo para beber na cozinha, afinal, a mesa estava posta.

Ai. Só de lembrar daquela comida, minha barriga roncou. Olhei o céu cor de chocolate pela janela. Já devia ser quase 3 da manhã. O almoço do dia anterior foi minha última refeição.

É. Quando chegamos até deu para enganar a fome, mas agora aquela dorzinha já estava começando a incomodar. Concordei em descer com minha amiga, mas, se a questão era não ficar sozinha, deveríamos ir as 3 juntas. Acordamos a outra que dormia pesado no beliche ao lado e voltamos para o andar inferior.

A entrada para a cozinha ficava logo abaixo da escada, não foi difícil encontrar. Assim que passamos pelo arco da porta, pude notar uma vela acesa em cima da mesa, no meio do cômodo. Na parede oposta à porta, junto à geladeira, um filtro de barro descansava sobre o mármore da pia. Tensa, segui minha amiga em direção ao filtro. Minha vista já estava se acostumando com a pouca iluminação do local quando senti algo trombar nos meus pés. Algo peludo. Algo nojento. Imediatamente arrepios percorreram meu corpo. Recolhi o pé por reflexo enquanto processava os ruídos agudos que, até então, havia ignorado. Eram guinchos. Guinchos e patinhas batendo contra o piso de madeira. Olhei para o chão a tempo de ver um bocado de ratos cinzentos correndo por nossos pés e se enfiando embaixo da geladeira.

Aquele SorrisoOnde histórias criam vida. Descubra agora