O que os olhos não veem, o coração não sente.

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Aos 21 anos eu já tinha uma vida toda ferrada, sai fugida do meu país após descobrir a traição do meu ex no dia do nosso casamento, simplesmente peguei minhas coisas e vim para Seul na Coréia do Sul com apenas o inglês e sem saber uma palavra em coreano. Sou brasileira e nunca tinha saído do meu país, criei coragem na hora da raiva e sai sem avisar; já fazem 2 anos que ainda não comuniquei ninguém de onde estou.

Tenho vários trabalhos de meio período que é bem comum aqui na Coréia e já me adaptei com essa rotina, eu nunca tive ambições apesar de ser formada em literatura e amar arte, adoro trabalhar em uma cafeteria específica, o cheiro do café me deixa nostálgica e me inspira na escrita; sim sou aspirante a escritora.

Eu acordo cedo e chego bem tarde, então minha vida social não existe, tenho amigos de trabalho e uma amiga que conheci por acaso e a considero como minha família, Yuna foi a pessoa que me acolheu quando cai de paraquedas aqui, ela me ajudou com o idioma (que ainda é bem ruim) e com os empregos. Eu até sentia saudade da minha mãe, mas ao lembrar das últimas palavras dela quando descobri a traição do Théo a saudade some:

 "O que os olhos não veem, o coração não sente minha filha, finge que nada aconteceu e vamos logo com isso, casa de uma vez se não vai ficar para titia porque tuas irmãs já estão casadas a tempo; não faz drama a essa altura do campeonato. "

E desde então não tenho contato com ninguém do Brasil e assim eu prefiro, estar num lugar onde ninguém sabe das humilhações que passei me causa paz. E eu aprendi a gostar daqui, apesar de ser latina e as vezes ser assediada ou receber alguns olhares tortos, meu foco é trabalhar para sobreviver e nada mais.

- Eu espero do fundo do meu coração que você esteja marcando um encontro nesse notebook, Clary. – Yuna sempre aparece aqui no café nos dias que estou trabalhando, no momento estou no meu intervalo e escrevendo. – Não acredito que ainda está escrevendo! Como quer escrever um romance se não vive um? – Ela toca meu caderno que puxo logo em seguida das suas mãos.

- Yuna, eu não preciso de um encontro, ainda mais para escrever. – Reviro os olhos para ela.

- Um encontro não é exatamente para assumir um relacionamento, você precisa transar ou vai ficar fazendo voto de castidade até morrer, porque depois de morta querida, só os bichos vão te comer. – Ela ri em quanto falava aquelas atrocidades.

- Meu Deus, você tem sérios problemas! – Eu ri enquanto ela se acaba numa gargalhada.

Yuna é o típico de coreana nada tradicional, ela simplesmente fazia o que tinha vontade, 2 anos mais velha que eu, trabalhava numa gravadora/produtora, era algo do tipo, ela nunca falava sobre o trabalho e eu nunca perguntava também. Ela é simplesmente incrível, linda e estilosa, enquanto eu era o típico desastre da moda. Faz uns 6 meses que ela cismou que eu preciso arrumar alguém e isso me incomoda as vezes.

- Você tem que superar o babaca do teu ex, conhecer pessoas diferentes, tem uns caras gostosos na boate que eu vou que eu posso te apresentar. – Ela falava brincando com o canudo do suco na boca.

- A boate que não deixam estrangeiras entrar? Conhecer pessoas diferentes? Parece que você não sabe que a maioria dos caras daqui tem fetiche por latinas, Yuna tira isso da cabeça. – Fecho o notebook e começo a me organizar para voltar a trabalhar.

- E o babaca do teu ex? – Ela arregala aqueles olhinhos puxados.

- Não quero pensar nele, você sabe como me sinto. – Arrumo a mesa enquanto levanto. – Eu preciso voltar agora, te vejo na quinta?

- Poderíamos sair amanhã né? Ir tomar uns drinks, vamos numa boate, dançar, faz tempo que a gente não se diverte. – Ela pisca várias vezes fazendo charme.

- Por favor Yuna, não faz assim... – Logo ela faz um beicinho. – Eu não tenho nem roupa para ir num lugar desses... – Antes de terminar a frase ela já havia pulado em cima de mim sorrindo e abraçando.

- Não seja por isso, mais tarde passo aqui, byeee! – Fico escutando o toc toc dos saltos dela sobre o piso, me perguntando o porquê fui aceitar o convite dela.

Me arrependi no mesmo instante, até porque eu não gosto de multidões e muito menos de bebidas, eu sou intolerante ao álcool e por isso o evito. Eu sabia que Yuna não acreditaria se eu inventasse alguma desculpa, sou péssima mentindo, o que me restava era aguardar o que ela estava aprontando. Recebo o pacote mais tarde com alguma roupa indecente que não tive coragem de abrir ali.

Final do expediente é aquela correria da minha parte por dois motivos: pegar o metrô porque o próximo é daqui 1h30 ou quando tem alguma exposição de arte que quero muito ver e esse era o motivo de hoje. Faz um mês que anunciaram essa exposição e eu aguardei cada dia ansiosamente, a sorte que o café ficava a 1 quadra do museu, terminei tudo e sai bem rapidinho para aproveitar o máximo da exposição.

Cada quadro ali pendurado me dava uma sensação de liberdade, algo que eu sentia já há um bom tempo, quem me visse ali certamente poderia ver o brilho nos meus olhos, sou amante da arte e era algo que não herdei de ninguém, eu simplesmente me apaixonei quando vi o quadro da Monalisa aos 6 anos de idade, foi ali que algo dentro de mim despertou para a arte. O fato de eu amar tanto os museus é que faz eu esquecer que eu tenho uma vida lá fora e foi isso que aconteceu; olho no relógio faltava 15 minutos para eu pegar o metro, saio correndo desesperada e acabo esbarrando em alguém. Como é que fala desculpa em coreano mesmo?

- Joesonghada, joesonghada. – Falo me curvando várias vezes pensando se eu não estava xingando a pessoa na minha frente, saio correndo em direção ao metro e por pouco não o perco. Me assusto com o toque do meu celular:

- Recebeu meu pacote? Vê se veste ele amanhã! – Fecho os olhos escutando Yuna rir no celular.

O chefe da minha melhor amigaOnde histórias criam vida. Descubra agora