Minhas lágrimas ricocheteiam

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Em toda sua composição, te dedico estas palavras, pelas lágrimas de verdadeira alegria que você me proporcionou.

Para V.

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O trem balança enquanto eu leio. Sinto o corpo ir de um lado para o outro, a cadeira um pouco desconfortável ranger e as palavras se tornarem confusas em minha mente devido a concentração quase nula que me toma assim que reconheço as pequenas casas que se formam na paisagem. São casas pequenas, chalés que remetem memórias e que me foram familiares rotineiramente. Afinal, eu andava por elas, corria por suas calçadas. Conhecia cada detalhe de seu acervo.

O livro perde sentido quando o abandono em meu colo e levo as mãos em direção a região de meu ombro. Desço a mão e toco na pequena marca eternizada que tenho na clavícula, a tatuagem que parece arder quando sou tomada por lembranças as quais minha cidade Natal me proporciona. Jamais me imaginei voltando aqui, jamais pensei que pudesse colocar meus pés no parque que fica próximo a igreja na qual me batizei. Jamais pensei que fosse ver novamente a rua que fica a padaria que meu pai tanto gostava.

Sou assombrada por fantasmas que jurei não me tocarem mais, mas me esqueci que o passado te seguirá até o fim.

Um barulho alto e estrondoso ressoa e o homem gentil que acompanhou os passageiros durante a viagem anuncia nossa chegada.

Meu coração parece querer saltar de meu peito e tudo volta a tona mais uma vez. Tento me tranquilizar, olho para minhas roupas, a meia calça preta, a saia listrada e a jaqueta de couro preto que está aliviando o frio que faz terrivelmente. Voltar no inverno foi uma decisão planejada, já que o verão foi cruel de muitas formas quando estive aqui.

Os passageiros se levantam e eu me levanto com eles. Pego minha mala no compartimento de cima e a carrego para fora do trem, e a primeira coisa que sinto é o cheiro do café que impregna as ruas. Um café que conheço a textura, o sabor, o sentimento. Sana jamais deixou que a bebida ficasse a beira do esquecimento. Ainda me lembro de quando provei seu café pela primeira vez.

Caminho em direção ao aroma, já sabendo para onde ir. A memória fotográfica me permitia seguir sem medo, apenas virando um beco de tijolos, casinhas rústicas e, virando a esquerda, eu pude sorrir ao ver o nome "candy betty" escrito numa placa de madeira simples.

Betty.

O nome me preenche e faz com que o sorriso se vá. Meu peito enche de algo dolorido, sem aviso, e o massageio com a mão. Lágrimas ameaçam cair.

"Você é sonhadora. É corrente que não se para. Você é luz, Hari."

Sua voz parece uma brisa vinda do canto mais belo que se tem do mundo. Ainda sinto seus braços envolta de mim. Seu cabelo grisalho, suas mãos enrugadas. O amor que nunca recebi daquela que me colocou neste mundo. E eu só consigo sentir saudade. 

A saudade é uma cicatriz que não se cura. Ela continua ardendo, firmando cortes. As vezes você só se esquece que ela está ali. Até ela arder de novo.

Paro de pensar por um instante e torno a apressar meus passos. Subo a pequena escada e entro no estabelecimento, fazendo o pequeno sininho tocar.

– Mas que droga de máquina infeliz!

Ah, outra voz que sinto saudade constante também. Mesmo que seja ela proferindo reclamações.

– Bom dia. - eu digo um pouco alto para que ela me ouça diante do barulho do movimento que se dá na cafeteria.

No instante que vejo sua cabeleira ruiva se virar, dando forma ao seu rosto de feições leves e delicadas, Sana arregala os olhos e deixa uma xícara cair no chão. Uma das funcionárias olha para a sujeira do chão e corre para pegar uma pá, seus olhos também estão arregalados. Mas, tudo o que vejo é minha amiga mais antiga vir até mim. As luvas pretas, o avental sujo de farinha e os fios um pouco desgrenhados e uma parte deles presos. Sana abre a parte que a separa da clientela e vem correndo até mim me abraçar.

Sinto cheiro de biscoito amanteigado assim que a toco. Abraço seus ombros, me permitindo chorar um pouco. Tamanho tempo vivendo em Seul nunca sanou a falta que sinto de minha melhor amiga.

– Achei que nunca mais fosse ver você. - ela diz.

– Como pode pensar isso de mim? É claro que eu voltaria para ver você. - digo, me afastando um pouco para limpar o rastro de umides dos olhos.

– Já fazem cinco anos desde que vi você naquela estação. Você estava tão... tão arrasada. Tão arrasada que sinto vontade de lhe bater por voltar aqui e se permitir voltar a encontrar sua dor. - Sana segura minhas mãos e sorri, apesar de suas palavras.

Eu também sorrio, mas não escondo o vermelho que provavelmente está se formando meus olhos.

– Eu tinha que voltar. - eu digo.

– Você veio por causa dele, não foi?

Sua pergunta me acerta em cheio.

– Como sabe disso?

– Conheço meu irmão. Sei que ele te enviou uma carta. Ele viu o desfile que fez. Viu a sua coleção. Ele viu o nome, Hari.

Umedecer meus lábios é uma dádiva, pois sinto minha boca secar. Passo a língua por eles e abaixo a cabeça, me permitindo lembrar de quando recebi a fatídica carta.

Eu estava em Paris, época de lançamento de uma nova coleção de inverno da Prada,  no ano passado. Eles haviam visto alguns rascunhos de ideias que eu havia tido para um possível desfile, e ficaram encantados. Não pude esconder a surpresa, já que me neguei até o fim levar aqueles desenhos a vista de qualquer um que não fosse eu, meu coração e garota de dezessete anos que rabiscou naquele caderno velho seu trabalho mais cru, visceral e sincero.

A linha Folklore foi lançada durante o período invernal parisiense.

Dancei sob as folhas, sob as canetas, sob o lápis que escorregava pelo papel e me tirava o fôlego quando eu percebia a forma que se formava nela. Quase pude sentir o cheiro da chuva, aquela que concedeu o dia mais belo do verão. Orvalho que formava pingos, um amor que surgiu na juventude. Uma garota que sempre quis mostrar seu valor ao mundo porque não era vista dentro da própria casa. Um garoto que a fez se sentir inteira, mas que transformou seu coração de vidro em cacos estilhaçados.

Ela remendou isso em tecidos, tranformando-os em folclores. Antigos, pesados, difíceis de vestir. Eram tristes, cinzas.

O desfile aconteceu com nuvens cobrindo o azul do céu, e vi meu passado andar na passarela através dos mais diversos corpos que os modelavam.

No último momento, meu trabalho mais difícil.

O vestido prateado esvoaçante que caia até o chão, cheio de respingos brilhantes em todo seu entorno. Juntamente com eles, pendurados em si, pequenas lâminas falsas que refletiam sob a luz. As suas costas, uma capa, com pedrinhas douradas cintilando devido a luz artificial. Assim que Lucy, uma das modelos mais conhecidas da marca passou pela metade do caminho, a capa foi deixada para trás, deixando apenas o vestido com respingos em seu corpo.

Lucy tinha a pele negra, os cabelos soltos e olhou para câmera enquanto abria os lábios, exibindo o tecido. Estava flutuando.

– Tinha dado um nome a este vestido, certo? - Seokjin, meu chefe e também idealizador do desfile, me perguntou. - Qual era mesmo?

Eu encarava Lucy retornar, pisando em cima da capa com pedrinhas douradas, parecidas e quase idênticas aquelas que jogamos em pontes dos desejos, quando respondi a Jin :

"Tears ricochet"

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 folclore (V) Onde histórias criam vida. Descubra agora