CAPÍTULO DEZENOVE

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—Malessa—

Eu sempre usei meu Dom para ajudar as pessoas. Tirar sua dor ou aliviá-la, ao menos.

     Sempre foi algo para me orgulhar, mas também uma maldição para me lembrar de que não fui tão benevolente assim quando meu pai precisou que sua dor fosse tirada para poder ser salvo. Mesmo que na época eu não tivesse um Dom, ou soubesse que existia tal coisa no meu sangue, fui tão hipócrita quanto sou hoje.

     Sempre fui vista como a que alivia os males, o sofrimento. Porém, quando fui levada por Argos naquela noite, não foi em tirar a dor do meu pai que desejei tão profundamente, mas em causá-la nos Ferais que eu sabia que estavam indo matá-lo. E me encontro presente naquele exato momento de novo. Me vejo naquela floresta escura, cercada de morte e das escolhas erradas que fiz.

     É nisso que estou enfiada quando aperto meu toque naquela ligação entre mim e o último guarda, e sinto a linha fina se contorcer sob minhas mãos e se apagar vagarosamente. Então, o homem arregala os olhos, e sangue escorre pelas suas orelhas quando a boca para de falar, o nariz de puxar o ar, e os olhos de enxergar. Sangue para de escorrer dos seus poros, e o corpo fica inerte no chão.

A quentura ainda percorre meu corpo, e um brilho fraco chama minha atenção para as minhas mãos fechadas em torno da adaga e do punhal ensanguentados. Ofego quando vejo um brilho rondar meus dedos como filetes de sombras, só que prateados meio azulados. E lentamente as vejo sumir, entrando para dentro de minha pele como se ali fosse sua casa. Seu lar. O calor daquilo se aloja dentro de mim de uma forma que eu nunca tinha sentido ou notado sua presença.

     O que é você? Pergunto para o poço desconhecido de escuridão dentro de mim, e ele se contorce em resposta.

     — Que tipo de feérica você é? — uma voz grave e sussurrada quebra o silêncio terrível na minha mente.

     Viro a cabeça para o Predador, parado a poucos palmos de mim, e me observando como se eu fosse um dos monstros que ele mata. O guerreiro analisa minhas mãos, agora livres do brilho prateado, e meus olhos, cujo a ardência neles diminuiu também. Ele mal nota os corpos que deixei ao redor — os restos deles —, apenas me encara com um tipo de cautela no dourado de seus olhos.

Sentada pelos joelhos no chão, ainda a três passos do homem que matei apenas usando o meu... Eu nem sabia o que eu tinha usado, se meu Dom ou algo a mais. Mas observo o guerreiro se aproximar e ficar parado perto de mim.

     A raiva ainda está aqui, mas cedo o espaço para o vazio oco e silencioso dentro de mim. O vazio familiar passou a ser composto de algo a mais, se controcendo, se enroscando, e se agarrando aos meus ossos. Não sabia se gostava da sensação.

     — Eu não sei o que está acontecendo comigo. — admito, e me arrependo no mesmo instante, porque o macho me olha como se visse algo que precisa ser consertado.

     Só uma falha. Uma coisa quebrada que precisa de reparos. Eu deveria odiar esse olhar, mas odeio ainda mais a pergunta que surge em minha mente: O quanto estou quebrada?

     Me recusei a descobrir a resposta. Recusei mergulhar naquele abismo profundo e desconhecido, por medo. Medo de descobrir que sou mesmo apenas uma casca do que deveria ser, e talvez, eu já soubesse disso. Mas não queria que fosse real.

     — Ele te chamou de filha de Davika. — observa ele. Provavelmente, conhece a Deusa e suas lendas para parecer tanto surpreso quanto desconfiado. Aperto as armas em minhas mãos, ainda de joelhos. — Por que?

~ɪᴍᴘéʀɪᴏ ᴅᴇ ᴅᴇᴜꜱᴇꜱ ᴇ ᴍᴏɴꜱᴛʀᴏꜱ~Onde histórias criam vida. Descubra agora