3º lugar no concurso Elite True Lovers
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Arrepio. De novo o rangido de lâminas de aço pelos azulejos da cozinha. O som estridente parece penetrar até os ossos. Em outros tempos, os fantasmas costumavam arrastar correntes pelos corredores... Agora deram de arranhar as paredes? Toda noite agora é isso. Nem adiantou vender o jogo de facas.
O ano mal começara, levando-se em conta que no Brasil isso só acontece depois do carnaval, e já sinalizava que seria um ano perdido. Todas as escolas fecharam os portões, confinando a algazarra das crianças dentro dos lares, agora mais conturbados que nunca; aeroportos suspendiam quase todos os voos; as praças e ruas estavam praticamente desertas, já que apenas farmácias e supermercados tinham permissão para continuar abertos, e apenas os passarinhos tomavam conta dos fios, telhados, muros, de todos os espaços, enfim, e pareciam entoar um cântico novo, como se exclamassem: "viva o coronavírus!", e todos respondessem ao mesmo tempo: "viva! Viva! Viva!".
O silêncio da cidade amplificava os ruídos de um relacionamento em crise desde, pelo menos, as últimas eleições, quando Júlio votara contra a corrupção e Romana contra a barbárie. Concluíram que tinham visões de mundo totalmente incompatíveis, mas seus corpos continuavam se entendendo bem demais para seguirem o decreto promulgado pela razão, sua porção humana condenada a uma prisão que se fazia tanto mais tirânica quanto mais gozo proporcionava. Tinha sido por isso que decidiram passar juntos os dias de isolamento social. Não suportariam ficar separados por um tempo que ainda nem sabiam o quanto poderia se prolongar. Porém, como sabem todos os amantes experimentados, tanto quanto a ausência é capaz de ressuscitar as mais arrebatadas paixões, a convivência é o meio mais eficaz para fazê-las ruir.
Depois de quatro meses dormindo de conchinha, ficaram só as macaquices, cada vez mais tresloucadas, que aconteciam a qualquer hora e em qualquer lugar do apartamento, e as brigas, que aconteciam em todo o resto do tempo e podiam ser ouvidas até nos andares adjacentes. Os vizinhos, que reclamavam o tempo todo quando tudo começou, já nem davam mais atenção. Para piorar, o fato de o assim chamado presidente da república parecer mais interessado em disseminar o vírus do que em debelar a pandemia acabou fazendo com que quebrassem o silêncio sobre política, que, passadas as eleições, haviam mantido até então. Depois de quebrada quase toda a louça e uma tevê de plasma, Júlio decidiu que era hora de dar um fim àquilo. Seu primeiro impulso foi estrangular a parceira até a morte enquanto transavam, mas a tentativa só os fez gozar mais depressa, e durante os poucos instantes em que ele finalmente pode esfriar a cabeça, já que só nessas circunstâncias ela calava a boca, concluiu que precisava de mais daquela paz para poder chegar a uma ideia melhor. Pegou uma das cartelas de comprimidos para dormir, dessas que todo mundo tem hoje em dia em algum armário ou gaveta, esmagou uns quantos e preparou uma Maria Sangrenta. Achou melhor não fazer um Cosmopolitan, o preferido de Romana, para não levantar suspeitas.
— Pela nossa paz — brindaram.
O sossego durou pouco. A dose deve ter sido muito alta. Romana, caída no box, ainda semivestida, não respira mais. O que foi que eu fiz? Júlio de repente descobre, no meio do seu maior desespero, que ama Romana como nunca antes amara mais ninguém. Agora é que ele não conseguia pensar em mais nada mesmo. O que vou fazer da minha vida sem você? Ele andava de um lado para o outro, puxando os cabelos como se tentasse extrair por eles alguma ideia da cabeça. Mas já vimos que ele não era muito bom nessa coisa de ter ideias, e, com exceção dos minutos diários de luxúria, ele não era muito criativo. Só restava uma coisa a fazer.
Foi à cozinha e voltou com uma faca de trinchar. Se Romana o visse agora, com certeza iria dizer que ele tinha escolhido a faca errada. Ela era insuportável com aquele seu faqueiro de dez peças. Só você mesmo, querido... Tsc, tsc, tsc... Como é que você pretende cortar a jugular com essa faca para pulso? O sangue de Júlio fervia. Olhou para o corpo inerte que arrastara do banheiro para a cama. Ainda era a mesma Romana, farta, rósea, exuberante, nem parecia estar morta. Júlio sentiu as entranhas se revirarem e parou de chorar. Uma raiva sem tamanho tomou conta do seu peito, e seus membros tremiam tensos. Agarrou Romana pelos cabelos e sacudiu sua cabeça. Romana! Teve o desejo de possuí-la pela última vez e não pode se controlar. Rasgou sua blusa. Arrancou a calcinha com um único puxão. Pulou em cima dela como nunca, se babando como em uma crise de epilepsia. No espasmo do clímax, abriu o pescoço com um golpe profundo e se deixou cair sobre o corpo da amada, confundindo soluços e esguichos.
Só várias horas mais tarde Romana acordou do desmaio e ficou louca ao se ver debaixo do corpo de Júlio, ambos encharcados de sangue. Seus gritos encheram o apartamento e chegaram até a portaria, mas ninguém acorreu em seu auxílio. Aos poucos foi se dando conta do que tinha acontecido, e então foi tomada de uma mistura de ódio e nojo. Sentiu ganas de estrangular Júlio. Olha o que que esse filho da puta me fez! Ela tinha que sair dali o mais depressa possível e desaparecer pra sempre da cidade. Pra sempre: essas palavras eram de Júlio. Então o desgraçado queria continuar na sua cabeça? Que direito ele ainda tinha depois da merda que acabara de fazer? Tirou a faca da sua mão e levou-a até o membro de Júlio. Mas olhar para a sua flacidez fez Romana sentir pena. A rigidez cadavérica ainda não se manifestara. Por que você fez isso, seu idiota? Rebentou num choro convulsivo e se deixou cair ao seu lado, tapando o rosto com a mão.
Recobrou o fôlego, olhou de novo para o sangue. Viu a faca em sua mão e a jogou longe, sobressaltada com a ideia de que agora ela era suspeita de assassinato. Pra sempre: estava claro para ela o que Júlio iria esperar dela agora. Ela tinha que repetir o seu gesto e acompanhá-lo para onde quer que ele fosse. Sentiu uma dor filha da puta no útero e só então notou que Júlio não era o único a ter sangrado. Foi só então que o ódio acabou por abafar o nojo.
Não, meu amor, você vai me perdoar, mas esse gosto eu não vou te dar. Levantou-se, foi ao banheiro e tomou uma ducha demorada. Quando voltou para o quarto, trazia todas as peças do seu faqueiro, até a faca de sobremesa. Sabia que ia precisar de cada uma delas. Só não sabia era que não existe faca para tirar da cabeça uma paixão como aquela.
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O Amor nos Tempos da Covid
HorrorUm casal em crise decide passar juntos os dias de isolamento social durante a pandemia de Covid-19. Com o passar dos dias, a convivência intensa vai deteriorando o relacionamento, levando a brigas constantes e comportamentos cada vez mais extremos...