C DE CRIME

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Mal sabiam o que estava prestes a acontecer. Naquela garoa da madrugada, num ar congelante de ranger os ossos. O vento parecia seguir no sentido contrário das protuberantes e pontudas serras negras. A neblina ofuscante aparentava querer esconder o que quer que estava à espreita, pronto para atacar quando menos esperavam. Os pequenos animais estavam avexados, tentando se proteger e encontrar alguma folha, algum tronco, pedra, arbusto ou até mesmo um ipê para fazer de abrigo, os sujeitando à submissão da suspeita movimentação abrupta e etérea.

E algo mais assustador. O silêncio ensurdecedor. Os grilos não estridulavam. As corujas não chirriavam. Nem mesmo havia um latido de um vira-lata caramelo qualquer perambulando nas pequenas, íngremes e labirínticas ruas distantes. Só o barulho da garoa aumentando lentamente, como se estivesse aguardando um momento clímax para arrebatar sem dó. Mas até lá, a tensão instalava-se pouco a pouco.

Quem era capaz de ouvir as próprias batidas do coração disparado era Susana. Ela caminhava e subia por uma trilha aberta de terra numa velocidade bastante incomum para si própria, desviando de amontoados de galhos úmidos e pedras enlameadas. Sentia algumas gotas finas descompassadas batendo lentamente no seu braço que fazia os pelos da sua nuca ouriçar. As suas narinas ardiam de tão secas pelo frio perverso. O vento furioso bagunçava seu cabelo crespo volumoso, fazendo alguns fios enroscarem e grudarem no rosto. Seguia, dizendo a si mesma para não temer. Oxi, ela conhecia aquela região com a palma da mão. Tá bem, estava escuro. Mas a lanterna do seu Motorola ajudava a iluminar o caminho, mesmo que a luz voasse de um lado para o outro devido a sua mão trêmula. Ela torcia para que a tremedeira não afetasse a mão direita também, porque senão o guarda-chuva florido não seria capaz de protegê-la. Ou proteger o seu celular com uma idade aproximada de quatro anos.

Quem diria que a certinha e obediente Susana escaparia pela janela do seu quarto em plena 2h30 da madrugada. Ela contava que seus tios não percebessem ou não descobrissem porque nem de longe queria parecer com sua odiosa prima, Clarissa. Não havia menina mais bonequeira em toda Ibirapuama. Ou no Brasil, ela ousava em dizer. Se a Clarissa despertasse e não a visse na cama, não pensaria duas vezes antes de a dedurar para o tio Gil e para a tia Joana. E não tinha razão nenhuma pra Clarissa implicar tanto com ela. Pelo menos até onde ela sabia. Ciúmes dos pais? Talvez. Desde pequenas, quando Susana foi morar com os tios depois do que aconteceu, a Clarissa não hesitava em arengar a todo instante. Ela caguetava qualquer coisinha que a Susana fazia para os tios, numa tentativa de fazê-la culpada, mas o tiro sempre saía pela culatra. Eles sempre acreditavam mais na Susana. Era absurdo. Essa peste devia ter algum transtorno. Susana bateu na cabeça para se corrigir. Que coisa feia a se pensar.

Mas se bem que de alguns meses pra cá, a Clarissa estava menos insuportável. Do nada deu uma boa vontade nela de esperar a Susana pra ir pra escola e também pra voltar pra casa (as duas quietas durante todo o trajeto), de perguntar o que a Susana queria para jantar quando os tios trabalhavam até tarde no jornal e não decidir isso sozinha (com indiferença ríspida, mas agora perguntava) e até deixar a Susana ter o controle absoluto do que assistir na televisão (com a cara emburrada, mas deixava). Só que ainda sim, a Clarissa continuava imprevisível.

Enfim, pelo menos esses pensamentos adoidados estavam servindo pra distrair ela daquele instinto medroso. Desviando o olhar e o celular para cada lugar onde achava ter visto ou ouvido algo, virando a cabeça para trás em direção da escuridão por diversas vezes. Agora ela desejava que as lendas folclóricas que sempre ouvia quando criança fossem verdade. Com quem ela preferiria trombar? A mula sem cabeça ou um maníaco assassino? O Saci-Pererê ou um canibal faminto? Sua consciência a respondeu sem nenhum esforço.

Ela poderia pensar ou fantasiar tudo àquela altura, menos tentar decifrar o porquê a Catarina mandou uma mensagem meia hora atrás pedindo para que fosse encontrá-la na Ponte do Lago Kastello. Aff! Não era nada grave, né? Se bem que não era tão comum a amiga enviar um WhatsApp desses, ainda mais nesse horário e num encontro no lugar que a Susana acreditava que o pessoal da cidade não achava tão macabro quanto deveria. Ave Maria, assassinaram o irmão da Catarina naquela ponte. O que é que ela estaria fazendo lá? Susana sustentava uma batalha psíquica contra a própria mente para não supor a maior das besteiras. Até porque a Catarina não tinha nenhuma questão mental que fosse algo verdadeiramente alarmante. Ela tinha superado a morte do irmão, né não? Ou seria algo insuperável? Um sentimento de luto que a Susana sabia exatamente como era. Talvez por isso elas eram tão amigas.

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⏰ Última atualização: Apr 20 ⏰

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