Bom dia

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A chaleira praticamente gritava, mas eu realmente não me sentia com vontade de me levantar e ir desligar o fogo. Eram quase seis horas da manhã e eu me sentia um verdadeiro zumbi, deitada no sofá, derretida, sob o edredom felpudo. Kimi, minha gata se aconchegava sobre mim, me amassando com suas patinhas e unhas, procurando o lugar mais confortável para se deitar. Lembrei que eu ainda não morava sozinha. Merda.

Levantei num pulo e corri para a cozinha, desligando o fogo rapidamente. A água estava quente demais para qualquer erva que eu tinha, então eu teria que esperar. Felizmente ninguém acordou. Sentei em uma cadeira na cozinha e peguei meu celular, fingindo que estava vendo qualquer coisa naquela tela, enquanto passava para cima, para cima, para cima.

Fiz um chá de qualquer coisa e me dirigi ao banheiro. Tomei um banho rápido, lavando os cabelos com o meu xampu preferido de cereja. Aquele xampu sozinho era capaz de mudar o meu humor. Saí do banho e me arrumei rápido. Vesti roupas discretas, afinal o dia pedia discrição.

Vasculhei o fundo da minha gaveta da escrivaninha em busca deles. Escondidos lá estavam, meus cigarros. Minha mãe jamais poderia imaginar que eu estava fumando escondida, mas sempre que eu tinha uma oportunidade eu fumava, desde o último ano do colegial. Escondi a caixa no fundo da mochila e andei a até a porta de entrada.

Respirei fundo antes de tocar a maçaneta. De fato, eu não estava nada empolgada. "Bases do Comportamento Humano", okay. Mas por que eles tinham que dar essa matéria no reformatório da cidade? Será que não dava pra estudar comportamento humano em outro lugar? Eu ficava imaginando todos aqueles delinquentes perigosos e idiotas perto de mim e isso me dava arrepios.

Coloquei meus fones de ouvido, escolhendo qualquer rock pesado pra relaxar e andei até o ponto de ônibus. Minha casa ficava em Akihabara, Chiyoda, um lugar bacana para se morar e perto da faculdade. Haviam poucas pessoas no ponto e eu aguardei em pé, ouvindo minha música em paz no frio da manhã. O ônibus não demorou a chegar.

Cheguei ao reformatório em poucos minutos. Neste horário da manhã Tóquio ainda não tinha tido tempo para formar seus engarrafamentos bizarros. Me identifiquei na entrada três vezes, apresentando a carteirinha da faculdade. Checaram minha mochila e ficaram com meu celular, o que me deixou muito irritada, mas pelo menos não ficaram com meus cigarros.

Segui as instruções do terceiro guarda e logo achei uma sala onde a professora de "Bases" aguardava. Alguns alunos já estavam lá, em pé conversando e eu entrei tentando chamar pouca atenção, mas não foi possível. Assim que entrei a professora andou até a minha direção, colocando a mão sobre o meu ombro.

- Srta. Miyuki Kitamura, bom dia! Junte-se aos seus colegas. Eles te explicarão a atividade de hoje. – Falou a professora, que tinha um forte perfume de lavanda.

Olhei para ela sem graça e assenti com a cabeça, me dirigindo ao grupo com a cabeça baixa, timidamente. Me juntei ao grupo, me apresentando em voz baixa, ainda numa tentativa de não chamar atenção.

Um dos alunos, um garoto alto de cabelos claros explicou a atividade. Nós iríamos nos separar em duplas e interagir com duplas de internos. A proposta é que tentássemos aplicar algumas perguntas de um questionário, mas que também deixássemos que eles falassem livremente e que fizéssemos anotações sobre a linguagem verbal e corporal dos mesmos. Ótimo.

Aguardamos mais alguns minutos até o restante dos alunos chegarem e então a professora chamou um dos guardas para organizar a nossa entrada. Segurei meu caderno de anotações contra o peito e me senti um pouco idiota nesse momento, mas respirei fundo. Comparada aos meus colegas eu parecia a mais preparada para encarar aquilo.

O guarda apertou um botão que liberou a entrada em um grande pátio cheio de garotos que andavam de um lado para o outro. Alguns conversavam entre si, em grupos, outros faziam exercícios. Alguns pararam o que estavam fazendo para nos observarem, me deixando bem desconfortável. Seguimos em direção ao fundo do pátio aonde havia um prédio de dois andares e entramos por uma porta pequena.

Virando à direito havia um corredor com três entradas. A professora organizou para que cada dupla entrasse em uma das salas e eu e a minha dupla, uma menina franzina de cabelos muito escuros, entramos na última sala. A sala estava bem detonada, não havia nada além das cadeiras e algumas pixações na parede, pessimamente cobertas por tinta branca.

Ficamos em silencio por alguns instantes, incapazes de dizer alguma coisa uma para a outra. Eu passava os dedos compulsivamente pelo meu caderno de anotações, várias vezes, enquanto tentava controlar a minha respiração.

A professora apareceu na porta, acompanhada de um guarda. Ela deu um sorriso amarelo e em seguida levantou o polegar indicando que era chegado o momento.

- Miyuki e Emi, conheçam Ren e Keisuke.

Dois garotos adentraram a sala. O primeiro entrou de cabeça baixa, era baixo, muito branco, tinha os cabelos muito curtos e castanhos e cara de choro.

O segundo me chamou atenção. Tinha o rosto erguido, o corpo reto, seus olhos brilhavam e parecia ter um sorriso discreto no rosto. Seus cabelos eram longos, muito pretos. Ele era alto, provavelmente bem mais alto do que eu. Não tinha qualquer expressão de arrependimento no seu rosto.

Eles se sentaram, o primeiro assumindo uma postura curvada na cadeira e o segundo sentando-se relaxadamente com as pernas abertas. Aquilo me incomodou na hora.

Vendo que a minha dupla estava completamente paralisada com a visão dos delinquentes decidi tomar a dianteira.

- Oi, bom dia. Eu sou Miyuki. Vocês poderiam se apresentar?

- Eu sou Ren. Ren Igarashi. Tenho 15 anos. – E se curvou em si novamente.

- Keisuke. Keisuke Baji, 17 anos, outra vez aqui, mas dessa vez não foi culpa minha.

- Okay. Legal. E vocês... o que fazem aqui dentro... o que gostam de fazer? – Perguntei completamente desconcertada, sabendo que a minha pergunta era idiota.

- Eu... eu... leio alguns livros e escrevo também. – Respondeu Ren.

- E você Keisuke? – Perguntei, me direcionando ao menino de cabelos longos.

- Eu não faço nada, eu conto os dias para sair daqui. É só. – Respondeu passando a mão pelos cabelos e esticando-se na cadeira.

- Entendi... Não tem nada que você goste de fazer, Keisuke? – Insisti, abrindo o caderno. De repente a matéria começava a fazer sentido.

O garoto levantou e andou até mim, parando próximo do meu rosto. Pude notas que suas feições eram curiosamente ameaçadoras e belas ao mesmo tempo, me causando sentimentos confusos. Ele parou próximo ao meu rosto, demorando-se por alguns segundos,

- Isso você vai ter que descobrir, doutora. 

Prenda-me. - Keisuke BajiOnde histórias criam vida. Descubra agora