1| Reflexão

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A chuva caía pesada do lado de fora, borrando a vista que Yasu tinha da janela. As gotas corriam pelo vidro, contornando as bordas frias do quarto, como um reflexo de sua própria mente. Toda aquela solidão, aquelas perguntas sobre seu passado e a ausência de respostas pesavam em sua alma como o céu cinzento que cobria a cidade lá fora. Não se lembrava dos pais, de rostos gentis que lhe sorrissem, mas que rostos? Era apenas um borrão nos seus sonhos mais profundos. E a infância, era apenas uma ideia vaga e inalcançável, como algo que ela pudesse observar, mas jamais tocar. E isso a machucava, mesmo que há muito ela tentasse não demonstrar.

Tudo o que conhecia sobre laços e proteção estava nas mãos de Ginevra e Martin, as únicas figuras em sua vida. Mesmo sem uma relação familiar típica, a garota os considerava os mais próximos de uma família que ela poderia ter. Ginevra, fria e firme, com uma intensidade que às vezes assustava, a moldava através dos treinos rigorosos, e de seus ensinamentos duros, e Martin, sempre silencioso, mas gentil, oferecia uma presença constante, um apoio silencioso em sua jornada. Mas carinho, ela sabia, era algo que eles também não conheciam, e embora isso a fizesse sentir uma cumplicidade amarga, o vazio continuava ali, esperando, em cada canto de sua mente.

"Você sabe que não pode fugir para sempre", disse Ginevra, de repente, de pé junto à porta. Sua voz era suave, mas havia nela uma rigidez inquebrável, assustando a garota que estava quase um transe com seus pensamentos. "Em breve, você irá para a escola, garota. Precisa aprender a se mover entre eles, a entender como agem."

"Eu não quero," respondeu Yasu, sem desviar o olhar da janela. "Não me importo com pessoas. Eu não preciso aprender isso. Eu não quero saber elas."

Ginevra suspirou, um sinal raro de algo que poderia ser empatia ou também impaciência. Ela se aproximou, cruzando os braços e encarando a jovem com aquele olhar que conseguia ser tão penetrante quanto qualquer arma.

"Você prefere ficar presa aqui, escondida, enquanto o mundo lá fora continua?" Ginevra perguntou. "A vida não se resume ao que você aprende nos treinos, Yasu. Uma hora, você precisará encarar o desconhecido."

Yasu fechou os olhos, tentando bloquear as palavras. Ela não queria admitir, mas a ideia de frequentar uma escola lhe dava um frio intenso no peito. Ela sabia que seria como entrar em um campo minado, cercada de pessoas que nada entendiam sobre sua vida, sobre o que carregava dentro de si. Tentaria ignorá-los, talvez, mas sabia que a sensação de não pertencer ali a acompanharia em cada passo.

"Eu já disse que não quero isso. Prefiro os ensinamentos que você me dá, as missões que fizemos juntas. Eu… sou melhor com isso," sussurrou, com um leve tremor na voz.

"Você tem uma escolha, garota. Mas escolhas têm consequências," A mais velha rebateu, inabalável. "E fugir delas só te trará ao mesmo lugar."

Com isso, Ginevra deixou o quarto, deixando para trás um silêncio carregado, denso. Yasu sabia que a mentora estava certa, mesmo que a simples ideia de enfrentar a escola lhe causasse repulsa. Ela sentia que havia algo mais que a aguardava, algo que só descobriria se encarasse aquele medo. Mas seria o suficiente?

A porta se fechou lentamente, e o som ecoou pelo quarto, misturando-se ao tamborilar da chuva lá fora. Yasu permaneceu imóvel, os olhos fixos no vidro embaçado, onde a imagem distorcida de seu reflexo parecia tão desconhecida quanto as sombras do passado. Ela sabia que aquela conversa com Ginevra não seria a última. Nos últimos meses, a pressão para que ela frequentasse a escola de elite italiana havia crescido, e a resistência dela só parecia reforçar a determinação de Ginevra.

Respirando fundo, Yasu se afastou da janela e caminhou até o centro do quarto. Olhou para o colar que sempre carregava no pescoço, um pequeno amuleto em formato de lua crescente. Era uma das poucas lembranças que tinha de seu passado, e às vezes, em noites solitárias, se pegava sussurrando para ele, como se as respostas sobre sua origem estivessem escondidas ali, entre as minúsculas imperfeições do metal frio.

De repente, ouviu passos suaves do lado de fora. Sabia que eram de Martin. Ele era o único que conseguia se mover com tamanha leveza, como se flutuasse ao invés de caminhar. Por um momento, desejou que ele entrasse e lhe dissesse algo reconfortante, mas, como sempre, os passos logo desapareceram pelo corredor, deixando-a novamente sozinha. Yasu suspirou, sentindo a mesma mistura de conforto e desapontamento que sentia toda vez que pensava em Martin e Ginevra. Eles estavam ali, mas sempre à distância, intocáveis.

[...]

Na manhã seguinte, Yasu se preparou para o treino com Ginevra. O ar estava frio e cortante, o céu ainda carregado das nuvens cinzentas do dia anterior. Ela vestiu o uniforme de combate, ajustando as luvas e amarrando o cabelo num rabo de cavalo. Quando desceu até o salão de treinamento, encontrou Ginevra já à espera, os braços cruzados, a expressão rígida.

"Hoje vamos fazer algo diferente," disse Ginevra, entregando-lhe uma adaga prateada. "Quero que você aprenda a sentir o peso da arma, a compreender seu equilíbrio. E, mais importante, quero que aprenda a se controlar."

Yasu segurou a adaga com firmeza, os dedos tocando o metal gelado. Não era a primeira vez que treinava com armas, mas sentia que aquele treino tinha um propósito oculto, um teste silencioso da paciência e autocontrole que Ginevra sempre lhe cobrava.

O treino começou intenso, com Ginevra exigindo movimentos precisos, esquivas rápidas e ataques controlados. Cada vez que Yasu tentava avançar com força, Ginevra a interrompia, corrigindo-a com um olhar ou um simples gesto de mão. A garota sentia o suor escorrer pela testa, o coração batendo rápido. Ela queria provar que era capaz, que podia ser forte e precisa, mas a pressão se acumulava, e sua mente a levava de volta à mesma inquietação, ao mesmo conflito sobre a escola que tanto queria evitar.

"Concentre-se, Yasu!" Ginevra ordenou, com uma dureza que ecoou pelo salão. "A primeira regra de uma luta é dominar a mente. Se você não conseguir controlar os próprios pensamentos, nunca controlará uma arma."

As palavras cortaram fundo, e Yasu parou, respirando pesadamente. O que Ginevra não sabia era que, no fundo, aquela batalha com seus pensamentos era constante. A cada noite solitária, a cada lembrança vazia do passado, ela enfrentava uma luta interna que não podia explicar, uma angústia que a consumia por dentro.

"Eu… estou tentando," respondeu Yasu, com um tom quase inaudível, mas Ginevra ouviu e se aproximou, pousando a mão firmemente sobre seu ombro.

"Eu sei," disse a mentora, pela primeira vez deixando transparecer um toque de compreensão. "Mas há coisas na vida que você só aprenderá sozinha, fora desse salão de treino."

Yasu olhou para Ginevra, surpresa com a mudança na voz dela. Aquilo soava quase como um conselho, talvez uma advertência. Sentiu um peso no peito, uma mistura de ansiedade e um fio de esperança que não conseguia ignorar. Talvez, afinal, houvesse algo naquilo que ela não compreendia ainda. Algo que só o desconhecido poderia lhe ensinar.

"Vamos de novo, garota. Concentração é seu melhor aliado, use isso." Ela disse enquanto avançava para atacá-la, usando apenas as mãos.

Tentou de novo.
Falhou miseravelmente.

A adaga de suas mãos foi tirada e eu levei um joelhada na barriga, não foi forte, mas foi o suficiente para derrubá-la no chão de novo, e naquele momento a dor que assolava seu corpo, fez a se sentir impotente, incapaz de lutar.

O treinamento foi encerrado e ela se arrastou até seu quarto, segurou o choro até a porta ela fechar. Pela primeira vez, ela chorou sozinha, sufocando seu grito de dor no travesseiro, não queria que Martin alarmasse Ginevra. Yasu continuou ali, chorando, frustada consigo mesma.

Com uma raiva tremenda, ela abriu a janela, e escapou pelo telhado da casa, andando e correndo sem rumo pela Itália.

Eu não vou voltar, ela pensou.

Astral Hell - Tokyo RevengersOnde histórias criam vida. Descubra agora