Caio segurou-se como pôde ao ouvir o barulho seco da bola de chiclete estourando. Virou-se com olhos flamejantes, dentes cerrados e rosto contorcido em direção à filha. Gabriela seguia alheia, de as pernas cruzadas em posição de lótus, fones de ouvido isolando-a do mundo e voltando-se inteira ao celular. Sua sobrancelha subia e abaixava com cada mensagem recebida. Risinhos curtos brotavam e se apagavam quase com a mesma insistência com a qual seus dedos nervosos passeavam pela tela.
Não viu o rosto do pai virado em sua direção e seguiu mascando o chiclete. O som do maxilar subindo e descendo parecia um enxame de abelhas aos ouvidos dele. Suspirou. Controlou-se. Segurou o volante do carro com força e tornou a olhar.
"Tudo parado... Que droga!"
Engoliu seco. Os risinhos de Gabriela soavam como deboche. Onde já se viu a menina estar tão alheia à irritação paterna com o trânsito?
— Era mais fácil a gente ir a pé, Gabriela! Nunca mais me peça para te levar ao shopping para encontrar suas amigas, entendeu? Nunca mais! Está ouvindo?
Ela não ouvia. Só sorria. E mascava chiclete. E deslizava os dedos.
"Essa geração me irrita! Onde já se viu tamanha falta de consideração com os pais? Ah, se fosse com meu pai! Ele me enfiava a mão na cara! Eu nunca que teria coragem de ficar fazendo bolas de chiclete na frente dele. Esses meninos de hoje não tem noção, mesmo. Mas a culpa é nossa! A gente trata deles como se fossem princepezinhos desde criança. E aí está! Tamanha falta de educação."
Conseguiu avançar com o carro por alguns metros. Esticou o pescoço para ver se conseguia perceber o final do congestionamento. Já tinha ouvido na rádio que ele só terminaria depois de passar a Ponte Eusébio Matoso. Coisa de dois quilômetros mais à frente. Mas, já viu... É sempre possível que a informação estivesse errada.
Uma nova bola estourou a paciência dele. Não segurou a mão direita que, quase que sozinha, avançou com gana em direção aos fones de ouvido e arrancou-os da cabeça da filha, que jogou a coluna para trás, assustada, de olhos arregalados, sem entender o que estava acontecendo.
— Mais uma bola de chiclete, ouviu?... Mais uma e eu jogo essa por-ca-ria de fone de ouvido com celular e tudo pela janela desta droga de carro!
A menina, com os lábios tremendo, acenou com a cabeça. Tinha entendido o recado. Caio jogou o fone no colo dela e voltou o rosto bufando para frente. Gabriela engoliu saliva, umedeceu os lábios e colocou o fone de novo. Parecia que o pai estava bravo com alguma coisa. Com o que podia ser? Seja lá o que fosse, não era justo descontar nela, quieta que estava até então. Todas as suas amigas ficaram sabendo da injustiça em questão de segundos. Pais eram assim. Descontrolados por natureza.
"É muito patricinha... Meu Deus! Onde foi que eu errei. Na idade dela, eu estava já me metendo em ONGs e lutava por um mundo melhor. Os jovens de hoje são muito individualistas. Não enxergam nada além dos umbigos. Não têm a sensibilidade social da minha geração! É isso! Bando de burguesinhos!"
O trânsito avançou mais uns metros preciosos.
"Quando entrar na faculdade, essa menina aprende a ser gente. Enquanto ficar no cursinho pago pelo papai, vai continuar sem noção do mundo. Ela pensa o quê? Que toda jovenzinha como ela tem pai e mãe para levar ao shopping sábado à tarde? Ela nunca pegou um ônibus na vida. Não sabe como rala uma pessoa comum. Se bobear, nunca viu um pobre, alguém que passe necessidade. Não tem consciência social. Ia ter consideração justamente com o pai, que só serve para pagar contas?".
Sem virar a cabeça, olhou de lado. Os dedos continuavam em seu vaivém. O sorriso de alienação tinha voltado. O maxilar incansável subia e descia produzindo o mesmo som irritante.
Levou um susto com um jato de água caindo sobre o para-brisa. Antes que pudesse reclamar, uma pequena esponja foi passada em toda a sua extensão, seguida de um rodinho que carregou a água com sabão. Gabriela não tinha percebido nada.
Um sujeito bateu no vidro do carro. Caio sabia que o melhor era não se fingir de indiferente.
— Um dinheirinho aí, chefe? Pra ajudar lá em casa.
"Não sou pai de barrigudo", pensou, enquanto se limitava a torcer os lábios e a acenar negativamente com a cabeça. Percebeu os olhos do sujeito dirigindo-se diretamente às pernas de Gabriela, mal encobertas por shortinho branco.
"Esse desdentado está olhando as pernas da minha filha?"
As pupilas negras do pedinte se dirigiram ao escudo do Corinthians que Caio trazia no carro.
— Vamos lá, patrão, sou corintiano como o senhor. Corintiano ajuda corintiano.
Ele havia se debruçado na janela do carro e se esforçava por manter um sorriso no rosto. Caio sentiu como se sua propriedade estivesse sendo invadida por um sem terra.
— Qualquer trocado serve, patrão!
— Hoje eu não tenho.
— A moça não tem?
Caio sentiu certa elevação no tom de voz dele. O sorriso do rosto secou e, olhando bem, parecia mais um bandido do que um desempregado ganhando a vida enquanto finge que presta serviços para motoristas presos no trânsito.
— Oi? – disse Gabriela tirando o fone e dando-se conta de que algo estava acontecendo. — Ele precisa de alguma coisa pai?
"Precisa. Se não precisasse, não estaria aqui pedindo ou exigindo dinheiro".
— Ela não tem dinheiro não, meu amigo – apressou-se em dizer antes que a filha cometesse o desatino de retirar a carteira do bolso do shortinho apertado e exibir ao pedinte as quatro notas de duzentos que lhe havia dado para passar a tarde com as amigas.
Colocou a mão no braço dela, apertando com força. O recado estava entendido. Era melhor ela se encostar de novo e ficar quieta.
— O senhor não tem nada?
"Meu Deus! Paulistano tem que passar por cada coisa!"
— Nada. Infelizmente, vou ficar devendo.
— Tenta achar alguma coisa. Corintiano ajuda corintiano...
Colocou a mão no bolso. Caio gelou. Estava claro agora. Era um assalto. O homem não o anunciara, ainda, com toda pompa e circunstância, mas o anúncio era iminente. Em segundos, um "isso é um assalto, eu estou armado e é melhor o senhor passar todo o dinheiro", chegaria aos seus ouvidos. Ou, o que pior, um "abre a porta, vou entrar no carro e o senhor vai dirigindo para onde eu mandar".
— Moço eu não tenho nada! Por favor!
— E esse celular aí no console?
Ao ouvir a palavra "celular", Gabriela teve um mau pressentimento. Pôs os dedos para repousar, escondeu o seu aparelho ao lado da porta, onde o sujeito não pudesse alcançá-lo com a mão. Se fosse um roubo, melhor que fosse roubado o aparelho do pai do que o seu. Tencionou o corpo e manteve a cabeça virada para frente.
— O senhor quer meu celular? É isso?
O homem fechou a mão dentro do bolso. Só podia estar pegando a arma, pronto parta sacar e atirar sem dó! Caio já anteviu um gatilho sendo puxado e uma bala vindo em sua direção, quente, rodopiando, rápida como um tiro e cravando-se um sua cabeça, que, em segundos, penderia em direção do volante, imobilizando-se sobre ele. Não haveria tempo sequer de fechar os olhos e ele ficaria ali até que a polícia ou alguém de bom coração o retirasse diante de uma Gabriela em estado de choque. Se é que ela também não estaria pensa para um lado com os miolos esparramados por todos os cantos.
— Se eu quero o celular? Longe de mim. Só estou perguntando porque, se o senhor não tem mesmo dinheiro, pode me passar um PIX. Hoje em dia, não ter dinheiro já não é problema para quem quer ajudar os mais pobres, né patrão?
— Está bem! — disse Caio, seco como um clique de revólver.
O pedinte sorriu, exibindo sua dentição falha de três dentes.
— Eu sabia que o doutor era pessoa razoável. Corintiano...
— Qual a chave do PIX?
— É meu CPF, patrão. Pode ser uma ajudazinha de dez reais?
"Dez? Isso é um roubo! Onde já se viu esmola de dez reais?"
— Está bem! Já estou fazendo o PIX! Pronto, ó! Fiz.
— Deixa eu ver – disse, sacando do bolso um celular idêntico ao de Gabriela. — Chegou mesmo! Nossa! Que felicidade! Ganhei meu dia. Vai com Deus! E, fé nEle, que nosso time há de melhorar!
Deu três tapas leves na lataria, esticou os lábios de uma orelha a outra e se afastou, não sem antes desviar o olhar impudico para as pernas da menina. Caminhou com lentidão, parou alguns carros atrás e voltou a jogar água com sabão no vidro sem a permissão do motorista da vez.
O trânsito continuava parado. Olhou sua filha de esguelho. A rigidez dela já havia se derretido e voltara a assumir a posição de lótus, recolocara o risinho na boca e reativara os dedos nervosos e o movimento do maxilar.
Caio ficou um segundo pensativo. Depois, resoluto, pegou o telefone.
— Gustavo?
— Oi, pai, tudo bem?
— Tudo péssimo! Estou preso no trânsito e acabei de passar um PIX dez reais para um pedinte. Não ria, não, Gustavo! Não ria que a coisa é séria. Queria que você me dissesse como faço para recuperar esse dinheiro.
— Recuperar um PIX de dez reais?
— Qual é o problema? O dinheiro é teu por acaso?
— Não dá para desfazer um PIX, pai...
— Eu sei, Gustavo. Quero saber como faço para recuperar o dinheiro na justiça.
— Na justiça?
— Caramba, Gustavo! Você está com algum problema, cara? Fumou alguma coisa? Uma esmola não equivale a uma doação?
— Acho que sim...
— Acha? Como assim? Você não é advogado? Paguei tua faculdade para quê?
— Calma, seu Caio... Calma! Sim: juridicamente, é uma doação. Mas o senhor...
— Não tem "mais" nem "maio mais". Eu fiz o PIX achando que o sujeito estava armado. Eu pensei que era um roubo. Se fosse para dar esmola, ele não tinha ganhado um centavo. Eu fui enganado. Essa doação é nula e eu quero esse dinheiro de volta.
Gustavo permaneceu em silêncio por um tempo. Caio voltou a olhar para Gabriela, em posição de lótus, dedos no celular, riso no rosto e maxilar subindo e descendo sem descanso.
— Você ainda está aí? Eu não posso entrar com uma ação no juizado de pequenas causas?
— No juizado especial? Sim, pai. Mas como o senhor vai saber o nome e o endereço do sujeito?
— Meu Jesus, Gustavo? Eu fiz um PIX! PIX, entendeu? Tenho o nome e a conta bancária dele. Não é difícil para um advogado descobrir o endereço.
— Está bem... Eu entro com a ação se é o que o senhor quer. Depois, mande para mim a cópia do comprovante.
— Chegando ao shopping eu mando. E a Carol? Tudo bem com ela? Mande um abraço. Tchau!... Ah! Só uma coisa. Entre com essa ação amanhã. Quero recuperar esse dinheiro o quanto antes.
Desligou o telefone antes de ouvir a resposta. Avançou com o carro mais um pouco. Faltava muito até a Ponte Eusébio Mattoso. Olhou para trás. Não conseguia mais ver o pedinte. Teve vontade de descer do carro, procurar o sujeito enquanto o trânsito não andava e exigir que lhe devolvesse o dinheiro. Desistiu da ideia quase tão logo ela lhe veio à mente. Era melhor não correr aquele risco. Ações são uma forma mais civilizada de fazer valer a justiça.
— O que é meu, é meu e vagabundo nenhum mete a mão. Esse sujeitinho vai descobrir que ninguém mexe com Caio Coimbra e Castro. Ah, vai! Nem que seja a última coisa que eu faça, tomo os dez reais dele de volta para mim!
Ouviu um novo estalo. Gabriela tinha feito outra bola de chiclete! Aquilo já era demais. Voltou-se para ela com o dedo em riste. A menina encolheu-se, arregalou os olhos e fez um gesto de súplica pedindo um instante para se redimir.
Com rapidez, formou uma pequena maça redonda com a ponta da língua, pinçou a goma de mascar, abriu a janela e, só para agradar ao pai, jogou na rua. Agora, com o pai aplacado, podiam seguir em paz rumo ao shopping.