Ódio a primeira vista

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POV REBECCA

Estacionei o carro no lugar indicado por ela via mensagem. Ao abrir a porta, senti a brisa quente atingir meu rosto, o dia estava ensolarado, e o céu completamente azul. Tudo no lugar era silencioso e deserto, o que me fez pensar que se ela me matasse alí, meu corpo jamais seria encontrado. Na verdade, a única certeza que tinha era a de estar sendo imprudente e burra, afinal, quem é que aceita, por espontânea vontade, encontrar com uma criminosa como Samanun num lugar desses? Eu tinha consciência de que não estava pensando direito, que este caso específico estava me enlouquecendo. Nas minhas investigações, havia descoberto quem estava por trás de uma sequência infindável de estelionatos, havia desmascarado a responsável e estampado seu rosto nos jornais. O ódio que essa mulher sentia por mim era óbvio e sabendo disso, o que eu resolvo fazer? Encontrar com ela, sem reforços, de forma antiprofissional, antiética e novamente, burra. Ela havia mexido demais com a minha cabeça e eu precisava prendê-la. Esse era o meu objetivo, e por isso eu estava me arriscando tanto. Só isso poderia trazer de volta minha paz.

Desci do carro já empunhando minha arma, pois não sabia o que esperar. Eu havia dirigido vários quilômetros para longe da cidade e chegado um pouco antes das 15hs, o horário combinado. Não havia nada ali além de um enorme galpão abandonado. Nenhum movimento, nenhum barulho. Uma porta de metal enferrujado entreaberta me convidava a explorar o espaço. Com a arma em riste e em alerta, deslizei o corpo para dentro do galpão, procurado por qualquer movimento enquanto meus olhos se ajustavam à luz baixa do lugar. Girei o corpo de forma técnica e ágil,  explorando cada ângulo que atingia meu campo de visão. O galpão acumulava muito entulho e algumas carcaças de carros abandonados. Feixes de luz atravessavam as brechas do teto e destacavam o cenário de completo abandono.

- Perfeito para um filme de terror. - Deixei sair.

- Como você é dramática! - Reconhecendo a voz que me respondia, virei meu corpo de forma brusca.  Em minha visão turva e sob minha mira, um vulto se transformava na mulher que eu tanto queria encontrar. Era Samanun Anuntrakul. 

Fui tomada por uma sensação de frio na espinha. Depois de tudo que ela havia me feito passar, das noites em claro, dessa obsessão maldita, ela estava ali, parada em minha frente sob a mira da minha pistola. O tempo definitivamente parou para que eu pudesse desfrutar um pouco mais do momento. Dessa vez, EU estava no controle. 

Com um sorriso implacável, ela andou vagarosamente em minha direção, quase que em câmera lenta, passando por cada feixe de luz que entrava pelo teto do galpão e se desenhava no chão. A mulher vestia um terno preto e tinha seus cabelos presos em um coque alto. Sob seu salto alto, o fato de ter uma arma apontada para si não parecia a intimidar, a fazia se aproximar mais. Mantive a mira firme, fixa em seu rosto, eu definitivamente não tinha a intenção de hesitar.

- Convenhamos, Rebecca, eu sei e você sabe que não vai atirar em mim hoje. - Disse ela já tão perto que pude me espelhar em seus olhos escuros. - Você não pode fazer isso, e se pudesse não faria porque não quer. - Completou.

- Você está errada, Samanun. Eu posso, eu quero, e receberia condecoração e homenagens por isso. - Disse, me mantendo firme e com o dedo no gatilho. Nas mãos, ela carregava uma porção de papéis.

Samanun chegou ainda mais perto, e com o queixo erguido, fixando seus olhos aos meus, segurou o cano da pistola e posicionou encostando na própria testa, de forma desafiadora e insana.

- Não, você não pode. - Disse ela, abrindo os dedos e deixando com que os papéis que carregava se espalhassem pelo chão. - E não, você não quer.

Desviando o olhar para baixo sem desfocar de Samanum, consegui entender do que ela estava falando e simplesmente gelei. Nas folhas, imagens dos meus pais e de meu irmão, em lugares e momentos diferentes,  realizando suas atividades diárias, na rua, na entrada de casa a até mesmo em frente a um supermercado. Instantaneamente, minhas mãos suaram a ponto de sentir um breve deslize da arma que eu segurava, mas logo fui tomada por um ódio tão intenso que poderia me dar o poder de fragmentar a pistola com a força das mãos.

- Sua desgraçada! Você não vai fazer nada com a minha família! Eu mato você! - Gritei, balançando a arma que permanecia encostada na testa dela. Sentia fogo ardendo em meus olhos.

- Rebecca, acalme-se. - Novamente, ela segurou o cano da pistola, dessa vez baixando a arma de vagar. - Eu tinha que encontrar uma forma de estar em segurança ao encontrar com você. Apesar de querer muito te ver pessoalmente e inclusive estar ansiosa por isso, eu sou uma mulher precavida. Se nada acontecer comigo, nada irá acontecer com ninguém da sua família, e todos ficaremos bem.

Ela havia invertido toda a situação em menos de um minuto. Enquanto eu tentava realinhar meus pensamentos em busca de uma saída para a situação, ela apenas saiu andando normalmente, observando o lugar. Disse que era uma espelunca, e que nosso primeiro encontro deveria ter sido num lugar decente bebendo champagne. Eu precisava me recompor, ela basicamente havia me coagido ali, ameaçado a minha família.

- O que você quer, Samanun? Por que estamos aqui? Diga de uma vez! - Falei. Ela se virou andando novamente até mim, parando mais uma vez perto demais.

- Samanun? Já passamos desta fase, Rebecca. Você já pode me chamar de Sam, não é mesmo? - os olhos expressivos dela pareciam atravessar a minha alma. - Você me perseguiu, estragou meus planos, acabou com muitos dos meus negócios, me fez perder dinheiro, me expôs, quase me prendeu. Quase mesmo!

- Porque você é uma bandida! Seu lugar é mofando na prisão, pagando por tudo que fez! - A interrompi.

De forma abrupta, ela tapou minha boca com a mão. Pude assistir suas pupilas dilatando.

- Você é insolente, é insistente e irritante demais, Rebecca! Eu precisava te ver pessoalmente, te colocar no seu devido lugar. E eu sei o quanto você ansiava por isso. Mas mesmo te achando extremamente sexy - baixou os olhos e respirou fundo, fitando meu pescoço - e ficando excitada com esse joguinho de polícia e ladrão entre nós, eu preciso priorizar a minha vida...

Enquanto ela falava, de tão perto eu sentia seu hálito quente, e o cheiro que vinha do seu cabelo preto, cujas mechas soltas pousavam no meu ombro. Aquela cena toda não a fazia sequer transpirar, permanecia com sua elegância intacta, e aquele cheiro de perfume caro destacava sua imponência. Por muitas vezes eu já havia me questionado:  se ela já era rica e poderosa, por que continuava querendo mais? O que havia levado essa mulher a se tornar quem se tornou?

Percebi instantaneamente que estava arrepiada, e como reação tentei me esquivar, mas ela me segurou, continuando a falar:

- Você não estará mais no meu caminho, Rebecca, e eu não estarei mais no seu. Isso é uma despedida. - Samanun sussurrou próxima ao meu ouvido, e passando a mão pelo meu pescoço, senti suas unhas arrastando lenta e suavemente, de forma provocante - Você não me verá mais, e nem terá notícias minhas. - Imóvel, assisti sua mão descendo por cima da minha roupa, chegando ao meu abdômen. Ela também acompanhava tudo com os olhos, tentando decifrar minha reação à sua investida. O calor da sua respiração, seu toque sutil em meu corpo, me senti mais uma vez travada, agora pelo misto de sensações. Ao mesmo tempo em que queria sair, também queria ficar, e essa contradição me causava confusão e angústia, talvez fosse a excitação natural de uma policial que acabava de encontrar sua algoz, não sei... - Sua vida como investigadorazinha que prende bandidinho mixuruca vai continuar sem Sam pra te animar - Então, subindo a barra da minha camiseta, ela puxou bruscamente o distintivo que estava preso no cós da minha calça jeans. - Porque nossa aventura acaba aqui.  - A conversa foi finalizada com ela jogando meu distintivo no chão e pisando nele com o salto.

Num lapso de consciência, a  empurrei para longe de mim profundamente irritada, e enquanto a observava simplesmente virar as costas e se distanciar, gritei:

- Eu vou prender você, Samanun! Pode não ser hoje, pode não ser amanhã. Mas você será presa por mim! E deixe a minha família em paz!

Ela não olhou para trás. Saiu pela porta do galpão abandonado e desapareceu ao som de um carro arrancando bruscamente. Carro que eu  sequer havia ouvido chegar, de tão envolvida na situação que acabava de viver. 

Essa foi a primeira e a última vez que a vi.

Até então.

Tão pertoOnde histórias criam vida. Descubra agora