Havia um prazer em fazer seu trabalho. Um fetiche talvez, que não sabia dizer a origem e que deixava seu sangue fervendo nas veias de antecipação. Algo tão viciante quanto estar em uma moto em alta velocidade. Psicopatia e falta de amor pela própria vida alguns diriam. Em partes aquilo era de fato verdade.
Ele estava coberto pelo sangue de suas vítimas, mesmo que não houvesse nada a ser visto a olhos nus. No ramo, diziam que quanto mais se acostumava a ceifar vidas seus sentimentos de empatia desapareciam tal qual flores em uma terra infértil. Se isso realmente fosse verdade, ele era tal qual um deserto.
Era uma vida solitária. Não havia como formar vínculos com outros humanos. Havia anos que não se sentia humano. Ele se sentia mais como um lobo. Um que havia visto sua matilha ser dizimada e não teve forças suficientes para defendê-los. Um animal que agora vagava solitário.
Encarava seu reflexo da janela enquanto na televisão o repórter comunicava novamente sobre a morte de um dos maiores empresários do país e o quanto aquilo chocava a todos. Um acidente muito triste ocorrido em uma pousada na Suíça. Aparentemente ele e sua esposa haviam esquecido de conferir se a saída da chaminé estava funcionando. Eles haviam falecido por conta do gás carbônico emitido na queima da lenha e foram encontrados por um funcionário que diariamente era responsável por limpar o local.
O laudo para afirmar sem dúvidas a causa da morte sairia apenas após o translado do corpo, mas a perícia do local encontrou bebidas no imóvel e não havia sinais de arrombamento o que descartava a possibilidade de um assassinato. O que indicava que tudo não passou de um acidente provocado pela desatenção em uma noite de comemoração das bodas de lã¹ do casal.
Ouvir aquilo quase o fez sorrir, mas ele tinha que disfarçar e cumprir seu papel. Sua presa naquela noite era importante e não podia se dar ao luxo de deixá-la escapar estando tão próxima a si.
Ele tomou mais um gole da bebida que estava em sua mão. Odiava beber em serviço, mas tinha que se acalmar de alguma forma. O vinho ajudava bem naquele momento.
"Ainda não posso acreditar na morte de Doyoon, foi tão repentino! Não estou conseguindo digerir isso. Sinto que a qualquer momento irei atender o telefone e ouvir a voz dele.", O homem falou a primeira vez desde o momento em que haviam entrado no quarto. O lugar inteiro parecia ter saído de uma fotografia de revistas sobre arquitetura, o total oposto dos lugares que o mais jovem dos homens costumava dormir.
"Minhas condolências a você."
"Não é necessário dizer tais palavras.Todos temos nossa hora afinal. Lamento ter que falar de assuntos tão fúnebres em um momento tão especial.", O mais velho abriu um sorriso que ele queria que soasse como compreensivo, mas junto ao olhar que parecia comê-lo inteiro só o deixava parecer alguém mais interessado em saciar os próprios desejos do que realmente alguém que se importava com a morte de um conhecido.
O homem desligou a televisão e encheu uma taça de vinho para si. Ele caminhou em direção ao outro parando ao seu lado para observar o que acreditava ser o que havia chamado atenção do outro.
Não havia luz nenhuma na região, aparentemente gerada por um problema no fornecimento de energia. Apenas a luz de uma imensa lua cheia conseguia servir de claridade, junto com as inúmeras velas posicionadas pelo ambiente.
Pelo reflexo o mais jovem observou as feições do outro. Ele era um homem de idade avançada e corpulento. Seus cabelos já tinham deixado o chamado grisalho para trás há muito tempo. Muito embora sua aparência lembrasse a de um avó, o olhar afiado e sua voz o faziam parecer intimidador, mesmo tendo metade de sua altura.
O chamavam de Ares no mercado portuário, por tratar os negócios como um campo de batalha, onde só havia só um vencedor e as empresas concorrentes, deveriam ser destroçadas. Enquanto isso, na vida privada, longe de ser apenas um simples dono das maiores frotas barqueiras do país, o mesmo era conhecido na máfia coreana como Thanatos, o deus da morte. E diferente da face bela que era atribuída ao deus, o empresário era tal como um veneno letal que destrói tudo à sua volta.
Doyoon era um de seus inúmeros capangas. Um de seus piões em um enorme tabuleiro que derrubavam seus adversários um após o outro. Ele tinha o prazer de derrubá-los como se não fossem nada a seu bel prazer, mas havia encontrado alguém a altura para jogar contra ele.
Por mais se suas feições não demonstrarem, o senso de proteção rugia sobre a superfície marcada pela idade. Assim como as peças no xadrez não eram infinitas, capangas confiáveis também não eram, ainda mais quando Doyoon era sua rainha.
Christopher também era uma peça nesse jogo. Uma que não tinha medo de se arriscar.
Ele fazia esse trabalho por dois motivos. O primeiro era o dinheiro. Ninguém que vivesse sob o sol poderia negar a importância dele e a quantia que receberia da máfia australiana e italiana se cumprisse o acordo era um valor tão cheio de zeros que faria um trabalhador braçal suspirar. O outro era simples e pura vingança.
Havia visto seu irmão mais velho afundar em dívidas, usado como um peão e desprezado na primeira oportunidade. Jamais esqueceria da forma como sua mãe chorou sobre o caixão dele e como ela se tornou apenas uma sombra da mulher forte que um dia havia sido.
Ele prometeu vingança e era o que vinha fazendo pacientemente, dia após dia, ano após ano. Tal qual uma aranha que lentamente tecia sua teia e aguardava por sua presa, ele dançou sobre o tabuleiro daquele enorme xadrez, abocanhando peça por peça, até conseguir alcançar o rei. No fim não seria Thanatos a dizer o "xeque mate".
Havia aprendido com os melhores a arte de ser "fatal", ao ponto de ser apelidado de "O grande lobo cinzento". Um apelido que recebeu por gostar de ser sorrateiro, letal e fazer um serviço limpo. Sua marca principal era observar até encontrar um ponto fraco, amedrontar sua vítima e então proceder com um ataque rápido e objetivo.
Não gostava da forma como alguns membros da máfia agiam, tratando a morte de suas vítimas como um quadro a ser exposto num museu e talvez fosse esse o motivo por ter escolhido trabalhar sozinho.
"Não precisa lamentar. Ele parecia alguém próximo de você."
"Realmente era. Eu conheci o pai dele e o ensinei como lidar com os abutres do mercado financeiro. Aqueles carniceiros de uma figa!", Por um momento pareceu que os olhos do mais velho estavam distantes e ilegíveis, mas aquele foi apenas um vislumbre passageiro. Logo a expressão que Cris havia visto refletida cheia de luxúria adornou novamente a face do outro, tal como uma máscara que havia caído. "Mas como eu já disse antes, esse não é o momento para assuntos tão…"
"Densos?", Ele perguntou ao outro que se aproximou de forma sedutora.
"Densos. Por isso eu comprei essa casa longe de interferências. Fico feliz que a água da banheira da hidro tenha aquecido antes dessa queda repentina de energia."
Ele sentiu quando o homem acariciou seus dedos o puxando para próximo a si. Bebeu mais um gole da bebida que ainda jazia no fundo do seu copo, impedindo que a repulsa que sentia aparecesse sobre a superfície.
"Realmente tivemos sorte. Ainda mais que esta é uma bela noite, não?", Disse o rapaz de forma sedutora.
"Sim, mas nada se iguala a sua companhia."
A voz de Thanatos estava mais grave, sensual e cobiçosa, quando solveu o conteúdo de sua taça e abraçou o mais novo pela cintura. O desejo de possuí-lo na banheira não saia de sua cabeça desde o momento que pôs os olhos nele durante uma encontro de negócios em Seol no início da primavera.
Havia algo na aura daquele rapaz que era diferente dos outros com que já havia se envolvido antes. Os outros tinham uma beleza infantil, diferente do outro, que por mais delicados fossem seus traços, possuía uma sensualidade nata e magnética.
Ele grunhiu quando o rapaz se afastou de si e colocou a taça que trazia na mão ao lado da garrafa.
"O vinho é excelente. Bastante encorpado e com notas bem florais."
"De fato.", O mais velho disse concordando com o outro. Ele encheu novamente sua taça e bebeu mais um pouco da bebida carmesim e observou o jovem que tocava a água com as pontas dos dedos dividido entre o desejo e a raiva de ter sido "rejeitado" pelo outro.
"Me agrada muito sua companhia, sei o quanto deve ser ocupado. Lida com o ramo portuário deve ser difícil. Eu sei como cuidar do prestígio de um nome é um senhor peso!"
Christopher armou seu mais inocente sorriso, que aumentou quando percebeu a expressão do outro se suavizar.
"É muito importante de fato. Você como o herdeiro de uma joalheria bem sabe. Tem que sempre viajar a negócios, buscar as peças mais adequadas e lidar com problemas da melhor maneira possível."
"Sim. Você tem toda razão, mas sinto um prazer imenso em tratar com meus futuros parceiros…pessoalmente." , O rapaz deixou a voz sair mais grave de propósito e com um olhar cheio de desejo ele deixou um sorriso travesso brincar sobre seus lábios.
Quando o outro pegou a garrafa que ainda trazia nas mãos e encheu novamente sua taça, ele sabia que havia atingido seu objetivo.
"Sinto um enorme prazer em saber que consegui a oportunidade de trabalhar com você e ter conseguido um pouco mais de… exclusividade."
Thanatos devolveu o sorriso de Cris antes de continuar. Colocou a garrafa em cima da mesinha próxima a banheira junto de sua taça e começou a despir do roupão branco que usava.
"O turismo é um ótimo negócio por si só, mas não há nada nesse mundo que não precise de um toque a mais. Uma exclusividade."
"Joias nesse caso."
"Sim. Todos quando visitam um país novo querem voltar para casa com algo que vá além de fotos. Um souvenir, um chaveiro. Porque não uma joia?"
"Garanto que as jóias produzidas pela minha empresa duram mais que souvenir barato."
"Eu tenho certeza disso. Uma jóia é algo duradouro, tal como as lembranças de um sonho realizado."
E também uma bela forma de esconder dinheiro lavado e advindo de fontes cuja origem não podiam ser verificadas pelo governo. Não sem que alguém saísse algemado, pensou o australiano que observava o mais velho se despir à sua frente como se o mesmo fosse uma visão dos deuses.
A parceria com ele era uma fachada e uma forma de caso algo desse errado ter um bode expiatório a quem culpar.
De quem desconfiariam primeiro: uma empresa gigantesca com anos de trabalho bem feito no mercado ou de uma empresa jovem com um diretor inexperiente na direção? A resposta era que a corda sempre estoura do lado mais fraco.
"Não tem medo de se arriscar? Jóias são mercado novo e não é algo tão simples?"
"Não!! O que não é arriscado para alguém como eu na minha idade?", o homem respondeu com bom humor entrando na banheira se aproximando do mais novo." Me conte sobre você e o que fez com que aceitasse meu convite?"
Cris fitou os olhos do outro que o observava com interesse e o fitou de cima a baixo mordendo os lábios antes de responder.
"Não é todo dia que recebo o convite de alguém tão importante e atraente."
"Atraente?", O mais velho encarou o outro com curiosidade segurando sua mão entre a dele.
"Atraente. Você tem um magnetismo que não sei explicar."
Ele deixou sua taça sobre a mesa e se aproximou do outro já dentro da água. Seus lábios se tocaram com volúpia e dominação. Havia uma necessidade e intensidade enquanto as mãos de ambos exploravam o corpo alheio desejando cada vez mais do que era oferecido.
"Sua pele é tão quente! Eu quero você! Venha me fazer companhia."
"Claro!"
Christopher se afastou do mais velho soltando um botão da camisa que usava, um de cada vez com um olhar cheio de malícia.
Thanatos pegou sua taça e tomou mais um gole do vinho observando os movimentos que o homem fazia quando sentiu que algo estava errado. Ele não se lembrava de ter bebido tanto para sua visão estar tão embaçada.
Depois disso veio o gosto terroso e uma crise de tosse. Ele segurou na borda da banheira fazendo a lateral da mesma tremer com tamanha força e peso depositado nela.
Ele sentia seu coração bater descompassado como se tivesse em meio uma corrida.
Tentou chamar pelo homem a sua frente que havia parado de desabotoar a própria camisa e agora o observava calmamente como se esperasse algo.
"Você! O que pôs na minha bebida?"
Thanatos tentou inutilmente colocar o peso do corpo sobre as pernas para tentar sair da banheira. Desejava tirar do rosto do outro o ar de triunfo.
"Eles vão descobrir o que você está fazendo! Meus capangas irão pegá-lo! Não sabe…Com quem está…lidando! "
"Quais deles, se todos estão mortos? Você realmente acredita que os seus piões iram vingar sua morte? Eles logo encontraram um substituto para você. Existe um substituto para todos, mesmo aquele conhecido como a morte encarnada."
"Então é… por vingança!"
"Vingança sim, dinheiro também. Todos tem seu preço.", Christopher sorriu. "O meu é ver a pessoa responsável pela destruição da minha família perecer pelas minhas mãos."
Christopher se aproximou do homem se contorcendo na banheira.
"Quanto a ser pego. Você não viu os noticiários?"
Os olhos do mais velho se arregalaram quando ouviu as palavras.
"Do…yoon…Você!..."
Christopher derrubou a taça do homem à sua frente dentro da banheira, pegou a própria taça e bebeu o conteúdo que restava nela.
Ele observou o outro até que não houvesse nenhum movimento de Thanatos. Até que os olhos do outro perdessem sua cor e se tornassem vítreos.
Christopher observou o cômodo e com um sorriso de mostrava as covinhas que possuía, vestiu suas luvas e deixou a casa usando uma chave mestra para fechar as portas que encontrou pelo caminho.
Ele andou até o lugar onde havia deixado sua moto e antes de partir, retirou suas roupas. Sentia-se incomodado com elas.
Se esticou deixando amostra a enorme tatuagem de um lobo perfurado por flechas nas costas, antes de colocar o macacão de couro.
Pegou as roupas que havia despido e a taça, colocando tudo dentro de uma mochila que trouxe consigo no compartimento da moto. Guardou tudo antes de colocar o capacete. Subindo na moto deixou para trás aquele lugar.
Ele não se lembrava de sentir aquela leveza em anos! Depois de tanto tempo permitiu que uma lágrima escorresse sobre seu rosto.
O lobo que ainda se sentia preso havia se libertado. Havia chuva no deserto que era a si mesmo e em meio a essa chuva a figura lupina finalmente corria livre.
La liberté même tard…Liberdade ainda que tardia.
1-Bodas de lã ou latão são a comemoração de sete anos de um casamento.~v~
Ola a todos que chegaram até aqui! Primeiramente gostaria de agradecer pela leitura. Como escritora, o carinho de vocês é como um abraço quentinho e apertado.
Segundo gostaria de agradecer a Alê e Unnie por terem me incentivado a colocar essa história para o mundo. Liberté é uma releitura de uma oneshot que escrevi a alguns anos atrás. A primeira coisa que escrevi durante o período de bloqueio mental que enfrentei.
É uma história que nasceu em um projeto chamado Killer B com outras escritoras que não foi para frente quando eu estava mais ativa no fandom de Cavaleiros do Zodíaco. Naquela época eu acreditei que nunca conseguiria escrever novamente, mas eu consegui. Hoje ela tomou outra forma e ganhou novas cores.
Choveu no deserto que eu sentia que existia em mim anos atrás e hoje sinto que aquela chuva deu origem às plantas que hoje brotam em mim.
A liberdade vem das mais diversas formas e a minha se deu no momento em que escrevi Venenos Sortunos.
Espero sinceramente que elas não venham através da vingança. Não acho que ela compense.
Para finalizar, espero que vocês tenham gostado da leitura. Um grande abraço e até a próxima.
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Liberté
FanfictionA vingança não é o melhor caminho, mas para Christopher ela significava liberdade. Ele era apenas um peão naquele tabuleiro, mas isso não iria impedir que ele derrubasse o rei. ⚠️Avisos⚠️ -Essa au é 100% ficcional e não aconselhado para melhores de...