Não consegui prestar atenção nas coisas que o padre dizia. Ele falava, falava, falava e nada fazia sentido pra mim. A única coisa que passava pela minha cabeça quando via ele, todo bem arrumado no altar improvisado no refeitório, era na quantidade de coisas que faltavam no asilo e que eles fingiam que não existiam.
Seu Venceslau também não prestava atenção e em certo momento, levantou da cadeira perto da porta e saiu de mansinho arrastando os pés. Ele estava fazendo aquilo ultimamente, do nada ele desaparecia dos lugares ou se distanciava e quando não ia parar naquelas mesas de cimento do lado de fora, se escondia no seu quarto. Em ambas as vezes ficava lá olhando pro nada, parecendo pensar em um monte de coisa. Cada dia ficava mais difícil para mim chegar até ele. Seu Venceslau não sabia quem eu era e mesmo lembrando de coisas da minha vida, ele não chegava até mim. Eu era um estranho para a pessoa que eu mais tinha carinho.
— Ei! — me adiantei até ele antes que caísse quando se desequilibrou ao passar para o lado de fora da casa. — Senta aqui. — Ajudei ele a se acomodar em um dos bancos de madeira na varanda.
Ocupei o espaço ao seu lado.
— O senhor tá bem?
— Por que vocês tem que ficar atrás de mim? — Afastou minha mão. — Que saco isso, nem conheço aquelas pessoas. — Estava irritado.
Já tinha algum tempo que sua barba crescia sem parar, assim como os fios brancos e crespos do seu cabelo. Ele não deixava ninguém tocar e nem ele tinha mais condições para fazer. Seu Venceslau estava se isolando ou eu queria que aquilo fosse mais simples.
— Eu também não.
Apertou os olhos para me olhar melhor. Fazia alguns dias que não sabia onde havia posto os óculos.
Suspirei.
— O senhor tá bem?
— Quem é você?
Já havia esquecido da quantidade de vezes que ele me fez aquela pergunta.
— Sou o Tobias. — Não provocou nele nenhum tipo de afeto.
Seus olhos se perderam na área externa do asilo. Eram as poucas plantas, o caminho em pedras, os muros.
Ele não falou mais nada. Lá dentro dava para ouvir o clamor, a música da missa domiciliar. A família da Regina era composta pela filha grávida, o genro e o neto. Ela já não andava a cerca de um ano e a Sônia havia dito que no ápice da pandemia, ela não viu ninguém. As pessoas que a parabenizaram e rendiam graças aos céus, não tiveram coragem nem de ligar via chamada de vídeo para olhar para a mulher.
Isso me fazia lembrar de todas as vezes em que em dias de visita, principalmente durante as crises de abstinência, eu não tinha motivo nenhum para sair daquela cela. Ninguém além da Jamila, um mês depois da sensação de morte passar, pôs os pés naquele lugar.
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🏳️🌈| O Mar que Aqui Retorna
Ficção GeralTobias é ex-presidiário e dependente químico que tenta retomar a vida no mesmo ritmo que o mundo retorna de uma pós pandemia. Através de reencontros, deseja refazer os laços com o filho e zelar pela vida de pessoas que um dia ajudaram ele, mas isso...