Relato da Ruína

21 6 2
                                    

Você que está lendo este relato, saiba que viver é uma maldição. Eu sempre soube que o mundo podia ser cruel, basta ver quantos mendigos existem espalhados pela rua ou crianças forçadas a crescer sem os pais. Basta ver as vítimas da Grande Guerra que ocorreu na Europa e todas as guerras menores que eclodiram ao redor do globo. Mas depois do que descobri, eu tive certeza de que vivemos em um pesadelo constante. Se você está lendo este relato, então significa que eu já estou morto e que a criatura me pegou.

Tudo começou no dia 3 de novembro de 1930. Eu ouvia sobre a posse de Getúlio Vargas no meu velho rádio. Eu tinha apenas vinte e cinco anos na época, ainda era jovem. Eu servia ao exército, me alistei com dezoito anos e permaneci na corporação depois do período de provação. Aquela altura, eu já havia alcançado o posto de cabo. Eram tempos diferentes, se um negro quisesse ser bem-sucedido na vida, era melhor escolher uma carreira pública. Eu pessoalmente não gostava muito da ideia de um estado, mas eu tinha que colocar comida na mesa. Eu estava noivo. Minha amada Isabel queria que nos casássemos em dezembro, e eu queria cumprir sua vontade.

Isabel era branca, como a maior parte das damas da alta sociedade. Tinha olhos verdes e cabelos alaranjados. O que ela viu em mim, eu nunca saberei dizer. Preto, pobre e filho de um criminoso. Meu pai era um conhecido ladrão da região do Catete. Já foi preso diversas vezes, minha mãe era falecida. Foi atropelada quando eu tinha apenas dez anos. Talvez se ela estivesse viva, poderia ter me auxiliado. Evitado a minha ruína.

Vou direto ao assunto, depois de ouvir toda a posse do presidente no rádio eu ouvi o telefone tocar. Atendi, era Isabel. Ela me ligou cheia de preocupações, afinal, o novo presidente ascendera ao poder através de um golpe. Ela estava preocupada com o futuro que viria disso. E principalmente, preocupada com seu trabalho. Eu estranhava o motivo de Isabel se importar tanto com o emprego, afinal, não era direito uma mulher trabalhar. Só que ela me prometeu que pararia depois que tivéssemos nosso primeiro filho, por isso, me tranquilizei. Isabel trabalhava com turismo e viagens.

Depois de conversamos e eu tranquilizá-la, ela me disse que queria me encontrar na casa que iríamos alugar depois do casamento. Eu concordei, mas deixei claro que só poderia ir depois do trabalho.

Depois de conversar com minha noiva eu saí de casa e fui para o quartel. Alguém tinha que cuidar daqueles recrutas, teriam novatos entrando na corporação, eu os entrevistaria e os colocaria em seus postos. Quando cheguei eu encontrei Almeida, meu amigo.

Almeida era o melhor amigo que um homem poderia ter. Era confidente nos momentos de paz e leal nos momentos de luta. Almeida era cabo, assim como eu. Eu o conheci no ano que me alistei. Almeida era metido a ocultista, eu, como bom seguidor do nosso senhor Jesus Cristo, evitava me envolver com bruxaria ou magia de qualquer maneira. Almeida dizia que era possível ser cristão e mago ao mesmo tempo, só que eu duvidava. Mesmo assim, eu nunca o destratei por suas crenças.

Ficamos conversando e depois de um dia entrevistando os recrutas, fomos para o bar. Almeida contava histórias sobre seu sonho de conhecer o Egito e sobre os mistérios descritos nos tomos que lia. Eu ouvia suas ladainhas com relativo interesse, mas meu interesse maior era na cerveja servida em minha frente. Almeida falou que morreria feliz se visitasse o Egito ao menos uma vez. Eu contei para ele que meus pais haviam passado a lua de mel lá, a muito tempo. Ele disse que levaria a esposa para lá quando tivesse a oportunidade. Eu ri. Almeida não era casado, na verdade, era um verdadeiro mulherengo. Outra atitude que eu não aprovava. Ele passava suas noites desvirginando moçoilas, lhes prometendo amor e atenção, somente para sumir no dia seguinte.

Saímos do bar as nove da noite, Almeida pegou um taxi para a casa e eu resolvi caminhar para o encontro de Isabel. Cheguei lá trinta minutos depois. Isabel estava na varanda, iluminada por uma vela, conversando com Ângela, a vizinha fofoqueira. Eu achava que ela era comunista, ainda acho. Quando me viu, a vizinha se despediu de Isabel e foi embora.

Relato da RuínaOnde histórias criam vida. Descubra agora