Perdição

Capítulo 1

" PS: Você está quebrado por dentro."

Junho de 2017

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-Eu estou quebrada...- digo observando o pôr do sol, o céu era uma mistura de laranja, dourado e vermelho com algumas nuvens que insistiam em fazer parte dessa obra de arte. Suspiro e me debruço ainda mais no parapeito da varanda, olho para baixo e fito o meu mini-jardim que fica embaixo da minha janela, tenho o privilégio de contemplar esse cantinho repleto de rosas sedosas, cheias de pétalas e perfumadas diariamente. Desde pequena nutro uma paixão desmedida por rosas, elas são tão delicadas, exalando beleza e um doce aroma inebriante.

Foram inúmeras tentativas até acertar a forma correta de cultivá-las adequadamente, faz três anos desde que comecei a colocar em prática o meu plano de criar um pequeno jardim, um lugar onde pudesse organizar os meus pensamentos e que transmitisse um pouco de paz. Embora o meu objetivo tenha sido inofensivo, o meu pai sempre encontrava uma maneira de arrancar e destruir às minhas rosas alegando ser perda de tempo e energia. Mas, com uma boa dose de persuasão ele finalmente deixou o meu jardim em paz.

- Se eu pulasse os meus problemas acabavam ou não... - penso enquanto a luz alaranjada ilumina o meu rosto. Volto a minha atenção para a aquarela esplendorosa estampada no quadro celestial do horizonte à minha frente.

A sacada não era alta, ficava a poucos metros do chão, era uma estranha sorte que me freava todas às vezes que cogitei interromper a minha estadia neste mundo, o receio de fazer algo errado e ter sequelas irreversíveis sempre me amedrontou, porém, passei a encarar a vida com uma certa tolerância, precisava encontrar uma forma de aceitação em relação a tudo que me cercava e o fato de ter ar nos meus pulmões, todavia a batalha diária contra a depressão drenava todas às minhas forças, ultimamente estava sendo complicado lidar com o vazio e os meus traumas.

As lembranças dele estavam voltando pouco a pouco como uma sombra fantasmagórica, um resquício de um passado do qual queria que permanecesse sepultado e não voltasse mais... Tal lembrete me fazia querer morrer, o que acho impossível, pois, já estou morta desde o momento em que o encontrei naquele chat.

- Merda! Não... Não... Não quero pensar nele! De novo não... - penso.

Os pensamentos surgem como cascata em minha mente, um rosto em particular me fez ter um pequeno sobressalto, meu corpo reage e o nome que evitei pensar ou sequer mencionar em todos esses anos ocupou um apartamento dentro da minha cabeça novamente, não deveria ser tão fraca a ponto de permitir que isso acontecesse... SIDNEY.

Já fazia algum tempo que não pensava sobre o meu fodido passado, já fazia algum tempo que não me lembrava do maldito mago negro que quase me destruiu, já fazia algum tempo que não me recordava de Sidney... Esse nome me assombrou nesses três anos. Ele é o motivo por trás dos meus traumas e pesadelos mais recorrentes, é como se a minha alma estivesse suja ou marcada.

Foi por causa dele que o meu coração se partiu em milhares de pedaços. Eu não o amava e nem sequer cogitei tê-lo como par ideal, mas, ele roubou a minha inocência e minha liberdade drenando todas às minhas expectativas em relação à vida, fez com que criasse um muro tão forte que jamais poderei amar sem ter medo de me machucar.

Me sento no parapeito da varanda, junto minhas pernas, apoio os meus braços em meus joelhos e me dou conta que a noite havia chegado. Solto um suspiro leve e em um passe de mágica regresso para o meu passado.

Me deparo com uma pequena Catarina em seus primeiros anos de vida, frágil, cheia de sonhos com uma inocência adorável que foi a sua ruína... As cenas foram surgindo como um pequeno filme dramático sobre uma menina presa em sua própria ilusão, seu mundo de conto de fadas foi drasticamente destruído por um invasor que lhe roubou a sua fé no amor.

"Sidney, me convenceu a fugir de casa. Ele disse que ninguém iria cuidar de mim, já que as minhas duas avós morreram. Conversamos há alguns meses por mensagem de texto em um chat da minha operadora. O que mais me encantou foi o fato dele compreender a minha mediunidade e os meus dons... Ele me entende tão bem... Tenho certeza que somos almas gêmeas."

Olho para as minhas mãos que estão suando frio, aperto elas como se estivesse transmitindo a força necessária para suportar essas lembranças dolorosas.

"Sidney se autointitulou Mago Negro, disse que sou muito poderosa e desejava profundamente ter os meus dons. Soube que ele quer me levar para a Europa, tem alguém à minha espera para drenar o meu sangue em um ritual. Pois, o líquido vermelho que corre pelas minhas veias é muito valioso para algumas pessoas."

"Eu conheci o meu verdadeiro pai, senhor do meu espírito... Ele deseja que eu me afaste de Sidney, pois, ele não é confiável e quer me fazer mal... O meu companheiro me bate, me tortura, tem inveja dos meus dons e ele pretende me aliciar na prostituição... Eu vou fugir."

Estou tremendo, não é pela chegada da noite tampouco do ar frio que toca o meu rosto, mas, pelas cenas do passado que me fizeram reviver uma avalanche de sentimentos contraditórios e dolorosos, reabrindo feridas que agora sangram.

- Você conseguiu fugir, minha pequena Catarina... - dou um sorriso fraco com os olhos marejados.

Consegui fugir, mas, não ilesa dos abusos que sofri. Principalmente, pela forma como fui tratada pela minha família. As palavras afiadas ainda cortam o meu coração e fazem parte dos meus pesadelos. Me disseram que nenhum homem iria me querer por não ser mais virgem, me disseram que havia perdido o meu valor e me culparam... Ele tirou a minha inocência, mas, não me refiro à virgindade, mas sim, a pureza da minha alma.

Por um milagre consegui concluir o ensino médio, tive que abandonar o magistério por conta da minha mudança de cidade. Fiquei um período em Fortaleza, onde descobri a minha vocação e agora irei iniciar o meu curso superior em administração.

- Estou honrando a promessa que fiz, Pequena Catarina. Não entreguei o meu coração a mais ninguém. Estou me curando...

Eu prometi a mim mesma que não deixaria nenhum homem me tocar, muito menos ganhar o meu coração... Apenas caso encontrasse alguém digno de mim e que valorizasse a mulher guerreira que sou. Por isso, de agora em diante ficarei sem sexo, sem beijos... Na realidade, estou entrando em um casulo que será a minha proteção de agora em diante.

Me levanto e dou de cara com a lua cheia tão brilhante e mágica. Os minutos passaram em um piscar de olhos que nem me dei conta que anoitecia enquanto estava imersa em meus pensamentos conturbados.

Coloco às minhas mãos sob o parapeito de cimento em que estava sentada e faço o meu pedido.

" Mãe lua, sei que existe alguém que foi feito para mim... Eu sinto as batidas do seu coração, eu sinto a sua pulsação, eu sinto o calor que emana do seu corpo, eu sinto o meu escolhido mesmo sem saber quem ele é, mesmo sem saber como é a sua face ou seus traços... Eu o sinto. Peço que me mostre quem ele é para não cometer o erro de entregar o meu coração a alguém que me faça sofrer... Mãe Lua, revele-o para mim para poder fugir e por favor o afaste de mim."

Me viro e em passos lentos entro em casa. Porém, sinto que o meu pedido foi ouvido e que hoje terei respostas...