O grilhão gelado apertou meu pescoço a noite inteira. Tentei mas não consegui pregar os olhos. Vi cada raio e gota d'agua que fôra derramada furiosamente sobre a terra. O homem acorrentado ao meu lado, um estuprador, não parava de chorar. Corria o boato de que os soldados iriam arrancar suas bolas e joga-las aos cães. E quando os relâmpagos começaram a colorir o céu escuro ele deixou a urina vazar sem freio algum. O miserável literalmente se cagou de medo, mas eu não podia reclamar, era uma dádiva. Essa era minha ultima noite no mundo dos vivos e a vida ainda me brindava com suas piadinhas de mau gosto. Quando a madrugada chegou e o cansaço o dominou ele dormiu. Eu tive que ficar sozinho na noite fria sentindo o cheiro da palha suja de merda.
Quando o sol despontou no horizonte, os guardas, malditos bastardos, desacorrentaram e me levaram pelos estreitos corredores da masmorra. Pior que morrer é ver o olhar irônico daqueles trastes que deveriam estar no meu lugar.
-Não se preocupe! Vou esquentar a cama da cadela da sua esposa quando você queimar no inferno. -Gritou um brutamonte careca quando passei. Logo em seguida cuspiu no lugar onde eu havia pisado. Ainda bem que eu não tinha esposa, uma pessoa a menos para me amaldiçoar enquanto caminhava para a forca.
Os olhos trancados nas celas me encararam. Todos assassinos, estupradores, ladrões, o pior tipo de ser humano tinham a ousadia de me julgar como se meu crime fosse hediondo, pior que os deles, e a final, realmente deveria ser. Os juízes que me condenaram à morte alegaram que eu era um mal para a sociedade, que eu não era digno de respirar o mesmo ar que seus filhos.
-Para o senhor só resta o laço de forca. -O juiz me sentenciou enquanto secretamente tecia as maldições para que Deus não tivesse piedade de minha alma no pós-vida.
Se tivessem me dado a oportunidade de me explicar eu não seria o único a ir de encontro com o carrasco. Meu pai merecia tanto quanto eu queimar pela eternidade. Por causa dele fiz o que fiz. Aquele gordo safado sabia apenas cuspir criticas e moldar fortes murros contra meu rosto. O gibão de veludo e o torque de ouro no pescoço eram apenas fachada, nobre ele não era, pois toda a noite ia dormir acompanhado do bom vinho. Prometi que amaldiçoaria sua alma enquanto a minha partia para o outro mundo.
Antes de atravessar o vão da porta, que levava à praça de execução, um padre me barrou, usava um habito de lã marrom com as barras imundas de lama e puídas, sua cabeça era adornada por uma grande tonsura e o queixo coberto por uma densa e desgrenhada barba marrom encimada por um gordo e bulboso nariz vermelho.
-Vamos meu filho! O perdão do senhor é o melhor caminho a seguir nesse momento depois só restará a escuridão e as trevas para você, a menos que se arrependa e peça perdão de seus pecados. -Sua voz grave e rouca era bondosa, seu timbre faria qualquer um cair sobre os joelhos e pedir o perdão, mas eu não. Eu não tinha culpa alguma apenas fizera o que palavras más me obrigaram, pelo menos era assim que eu pensava na época.
A manhã estava fria, o chão encharcado era uma estranha mistura de lama e estrume de cavalo, essa mistura exalava um cheiro podre que empesteara toda a praça que estava coberta por um fino e baixo tapete de nevoa branco. Os aldeões me encaravam como seu eu fosse a imagem de satã na terra, suas bocas retorcidas e miseráveis me julgavam, não sei porque ainda se davam o trabalho de fazer isso afinal eu já estava condenado.
Um tablado de madeira fora construído no centro da praça. O carrasco, com a cabeça coberta por um capuz de couro, testava a força do laço que apertaria meu pescoço. No lado oposto de onde o carrasco estava um monge recitava versos de algumas orações em latim. Cruzes de madeira e monges esfarrapados murmuravam orações para que o pobre condenado se arrependesse de seus pecados antes de morrer. Um anel de soldados foi posicionado ao redor tablado para afastar os encardidos camponeses.
Minha pele estava tão gelada que o simples toque de minha pele na manga de couro do casaco de um dos guardas que me escoltavam era reconfortante. Meu pé congelou quando afundou na lama gelada, mas mesmo assim continuei andando, embora temesse a morte caminhei firmemente em direção às escadas de madeira sempre expondo minha petulância e orgulho, queria que as pessoas se lembrassem deles quando eu partisse principalmente meu pai.
Tentei disfarçar o máximo que pude e mesmo assim acho que os guardas perceberam a tremedeira de minhas pernas assim que toquei o degrau de madeira do tablado. O carrasco passou o laço em volta do meu pescoço, os fios soltos e duros fizeram minha pele pinicar. O laço ficou muito apertado, mas não o suficiente para me matar.
Não basta caminhar até a forca e depois perder a vida, antes o condenado é obrigado a ouvir o nome de todos os ancestrais do juiz que o condenou, pronunciado por um rapaz dentuço, narigudo e magricela, para depois ainda ter que suportar o demorado sermão do padre. Enquanto o padre falava aproveitei e vasculhei a multidão procurando o olhar reprovador de meu pai. Sabia que ele estaria me observando com seus olhos estreitos e profundos, e sua boca torta. Sabia que estaria me julgando enquanto tentava se convencer que a culpa não era sua. Para minha surpresa encontrei algo diferente. Seu rosto estava vermelho e inchado e seus olhos vermelhos estavam marejados de gordas lagrimas que insistiam em escorrer sem a sua permissão. Seu olhar não era de reprovação, vi dentro dele, vi que ele se culpava por aquele laço estar em meu pescoço. Vi que ele vasculhava em sua própria mente, tentando descobrir onde tinha errado comigo. Foi assim que a culpa caiu sobre mim como se fosse uma pesada bigorna de ferreiro, nos poucos minutos de vida que me restavam vi as mortificações que ele fizera por mim, dos apertos que passou, as dores que sentiu e as cicatrizes que o marcaram, tudo. Todas as ações que ele fizera para eu não acabar ali, no lugar onde estava, encarando o pesaroso olhar de meu pai.
O medo de morrer desapareceu, eu realmente merecia aquela sentença, sobrou apenas pesar, queria passar mais tempo com ele, mas agora era tarde. Finalmente a petulância sumiu de meu rosto, o padre percebeu meu arrependimento e me perguntou:
-Deseja pedir perdão de todos os seus pecados para que possa glorificar o senhor em toda a sua gloria após a sua morte?
E para o espanto de todos, minha voz saiu tremula.
-Sim! -Disse todos os meus pecados ao padre assim como os meus defeitos e todo o resto. E com a voz grave ele olhou dentro de minha alma e disse.
-Então pelo poder investido a mim por Deus e pela santa igreja eu te absorvo de todos os seus pecados. -Fez o sinal da cruz e rezou algo inaudível, também em latim, quando terminou virou-se e deixou o tablado.
O carrasco se aproximou mim e com a voz fanha perguntou:
-Quais são suas ultimas palavras?
Encarei a multidão. Encarei meu pai e com toda a força de meus pulmões gritei as ultimas palavras de minha existência:
-Pai! Não foi sua culpa! Perdoe-me. -Assim que fechei a boca o carrasco puxou a alavanca e o chão sumiu sob meus pés, a Terra puxou meu corpo para baixo, mas toda a sua força não foi o suficiente para arrancar minha via, fiquei pendurado com a traqueia esmagada e os pulmões em chamas, me debatia desesperadamente, até que algo se agarrou em minhas pernas e puxou meu corpo para baixo fazendo meu pescoço quebrar.
Fora meu pai. Ele não aguentou ver eu me debatendo daquela forma, por isso fez seu ultimo sacrifício e ato de amor por mi, me deu uma morte rápida. Finalmente eu estava perdoado por Deus e pelo meu pai e para mim isso era o suficiente para descansar em paz.
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Forca
Short StoryEsse conto foi publicado originalmente na antologia "Horas Sombrias" da editora Andross O que faria se estivesse a beira da morte? Se ja estivesse trilhando o caminho para encontrar o carrasco? O que pensaria se só lhe restasse as ultimas palavras...