Enquanto eu respirar

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Dois trens já haviam passado pela estação Brigadeiro do metrô e centenas de pessoas entrado e saído de seus vagões, mas ela continuava sentada em um dos bancos cinzas, olhando fixamente para a parede em sua frente. O barulho externo parecia não conseguir tirá-la do torpor de mais uma desilusão. Mais uma resposta negativa e sua esperança de se tornar uma escritora de verdade parecia escorrer pelo ralo. Se era falta de talento ou de sorte, já não importava mais. Ela havia decidido que aquilo era o bastante. Ao se levantar do banco e caminhar em direção aos trilhos, uma mão forte a segurou pelo braço.

- Ei! O que você está fazen... - disse Sara, se virando para ver quem a puxava de volta para o banco.

Sentado no banco ao lado de onde Sara estava, um senhor aparentando ter cerca de 80 anos, vestido com um terno marrom claro e com o cabelo grisalho bem penteado para trás olhava para a garota com firmeza e uma certa ternura.

- Senta aqui, minha filha. Vamos conversar um pouco.

Sem saber o que dizer, Sara sentou-se novamente e encarou aquele senhor com ares de sabedoria.

- Eu já não sei mais o que fazer... Minha vida tá uma merda, nada do que eu faço dá certo... Eu tô a beira de um colapso! - desabafou Sara, com lágrimas nos olhos.

- Sim, eu bem sei como é difícil essa vida literária. Quando eu era jovem e comecei a escrever meus primeiros poemas, senti a mesma dificuldade. Graças a um amigo editor, publiquei meu primeiro livro e o resto da história você já conhece. - respondeu o senhor.

Sara enxugou as lágrimas com a manga de sua blusa desbotada. O barulho do trem chegando impediu que a conversa continuasse, mas deu tempo para ela respirar. Quando outras centenas de pessoas partiram rumo à próxima estação, Sara disse:

- Eu senti tanto a sua falta... Cheguei a pensar que nunca mais te encontraria.

- Eu nunca me afastei, menina. - disse o senhor.

- Agora eu sei disso. - respondeu Sara com os olhos marejados novamente - Enquanto houver você do outro lado, aqui do outro eu consigo me orientar.

O senhor ouviu aquelas palavras e manteve-se firme, ainda que sua expressão trouxesse um ar de tristeza. Depois de alguns segundos observando Sara, ele continuou:

- O filme da vida é assim, Sara. Quando você menos espera, a cena repete. E não raras vezes, a cena se inverte. Eu sei pelo que você está passando, pois já estive nesse mesmo lugar. Enquanto te ouço falar, vou enchendo a minha alma daquilo que outrora eu deixei de acreditar. Foi preciso muita força para voltar a sonhar.

Sara respirava fundo, tentando se acalmar, mas as lágrimas insistiam em correr pelas suas bochechas vermelhas.

- Eu quero sonhar de novo. Eu quero, eu juro que quero... Desde criança eu sonhava em seguir a tua palavra, a tua história. Eu via ao meu redor a tua verdade fazendo escola, mas hoje eu só vejo a tua ausência fazendo silêncio em todo lugar.

Enquanto desabafava, Sara percebeu que um garotinho segurando a mão de sua mãe olhava para ela e parecia compadecido de sua dor. A inocência de sua expressão fazia Sara se lembrar de sua própria infância em meio aos livros e de quando descobriu a razão de estar no mundo, a escrita. Suas primeiras palavras, ainda tortas e com pouca maturidade, deram lugar ao mergulho profundo nos conflitos existenciais de uma jovem adolescente.

Sua mãe fazia questão de incentivá-la, mas chegou um momento em que isso não bastava. A jovem escritora queria ganhar o mundo, imprimir suas letras nos papéis da vida real e alcançar outros corações inquietos pelos anseios da modernidade. A cada não, uma pétala de esperança voava para longe. A cada porta fechada, uma tranca se fazia em seu coração. O sonho da menina se transformava em pesadelo. Depois que sua maior inspiração se foi, ela sentiu como se metade de sua vida tivesse se esvaído junto. E se assim era, não parecia valer a pena continuar sem se sentir inteira.

O apito das portas se fechando nos vagões e levando outras tantas pessoas para seus destinos fez com que Sara despertasse de seus devaneios sombrios. Ao seu lado, o senhor parecia não ter se movido durante aquele tempo que pareceu uma eternidade.

- Eu sei que você quer me ajudar. Mas eu não vejo mais como sair dessa. Depois daquele dia, eu mudei. Metade de mim agora é assim. Ficou apenas uma parte e a outra se foi. De um lado, a poesia, o verbo, a saudade. E eu aqui, sozinha... - falou Sara, olhando-o nos olhos.

- Sara, minha querida... A poesia e o verbo ainda existem dentro de você. Por mais que a saudade aperte o peito de um lado, eu vejo do outro a luta, a força e a coragem para chegar no fim. E eu posso te garantir, o fim é belo.

- Incerto. - respondeu Sara.

- Depende de como você vê. - continuou o senhor.

- Eu não sei como fazer isso, como ver a vida como o senhor vê...

- Você só precisa se abrir para o novo, o credo. Acreditar em você e na certeza de que seu esforço vale a pena vai te levar aonde você quer ir. - completou o senhor.

Sara abaixou sua cabeça, como se buscasse se esconder do mundo, da vergonha e do medo de encarar a realidade de frente. No peito, um vazio enorme se fazia, ainda que uma pequena luz começasse a surgir na escuridão de seus pensamentos.

- Eu não sou talentosa, eu nunca consegui publicar nada, ninguém quer ler o que eu escrevo. Como eu vou continuar assim, sendo uma inútil? Se ninguém acredita em mim, sem ninguém bota fé no que eu faço? Me diz! - esbravejou Sara.

O senhor respirou fundo antes de responder e direcionou para Sara um olhar de ternura e compaixão. Ajeitou seu paletó e os cabelos, antes de respondê-la.

- Ninguém vai acreditar em você enquanto você mesma não tiver fé. É disso que você precisa para seguir em frente. A fé que você deposita em você, e só. A fé da menina Sara, que sonhava em mudar o mundo. - disse o senhor, de maneira firme.

Como um filme, Sara se viu novamente quando criança e lembrou de como era confiante em tudo o que fazia. A certeza que tinha ao se apresentar na escola, contar suas histórias para seus pais e inventar novos mundos. Aquela menina idealista se perdeu pelo caminho de um mundo cruel invadido pelo trator das redes sociais e suas vidas perfeitas. Sara começou a se comparar com suas amigas e as influenciadoras que seguia aos 12 anos. Cada vez mais se achava incapaz de reproduzir o conto de fadas digital que via na tela fria de seu celular.

Seu peito se encheu de ar mais uma vez. Dessa vez, o ar parecia mais puro. Um tímido sorriso surgiu em seus lábios ao lembrar da alegria que tinha ao mostrar para as pessoas o que havia criado. Se pudesse resgatar uma gota daquela espontaneidade, ela seria capaz de continuar.

- Eu não sei como te agrade... - parou subitamente, Sara.

Ao olhar para o lado, o banco do metrô estava vazio. Nenhum sinal do senhor que havia mostrado a ela a estrada de sua redenção. Emocionada pela visita inesperada, Sara fechou os olhos e agradeceu.

- Obrigada, vô. Desde que o senhor se foi, eu não passei um dia sequer sem lembrar de você. E vou continuar lembrando. Eu te prometo que só enquanto eu respirar vou me lembrar de você. Só enquanto eu respirar.

Enquanto eu respirarOnde histórias criam vida. Descubra agora