Montagem Urbana

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"O que os livros escondem, as palavras ditas libertam." (Conceição Evaristo)

A primeira vez que a vi foi cheirando uma carreira de cocaína. Estava sentada no chão de um jeito desengonçado, como se não tivesse controle do corpo; braços ralados apoiados sobre o banco de pedra da praça e uma latinha de cerveja amassada servindo de suporte para o pó branco. Seu vestido era amarelo, pontilhado com flores coloridas, fato que destacava sua pele escura.

Tentei desviar o olhar da situação, porém nós nos percebemos. Penso que é parte disso que nos une: o medo, a filáucia, a fúria e talvez algo mais, acredito que o que nos faz entender que não estamos sós, apesar de quererem que acreditemos nisso. O vento soprou seus cachos e ela sorriu, olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Um quadro a óleo chamado "Nascida Para Morrer". Eu, parado e sem expressão alguma, a percebi como semelhante, pois eu era "Erro", desde que me entendo por gente. E juntos éramos pessoas que não deveriam existir. Não deveriam dar certo.

Nas aulas de modelagem, nunca consegui fazer um paleteado perfeito com a cerâmica. Pensava que era um material que nunca se encaixava nas minhas mãos, apesar de entender em síntese como a estrutura deveria ser. A mesma coisa com aquela situação. Por mais que fossemos semelhantes de algum modo e eu compreendesse profundamente o fato, de alguma forma entendia que deveria me afastar dela caso quisesse manter tudo que lutei para construir em seu devido lugar. Não que acreditasse na ideia de meritocracia, mas intrinsecamente sabia que o mundo não nos queria juntos. Então, quando ela me pediu moedas, simplesmente disse que não tinha. Quando implorou, se jogando em minha direção, com as pernas fracas demais para aguentar o próprio peso, apenas dei alguns paços para trás a deixando tombar no asfalto. E, quando se arrastou em minha direção com nariz salpicado de branco, o olhar perdido e o braço estendido em súplica, "Impelida a Degradação", eu rapidamente dei as costas e fui embora, pois não entendia o porquê a aquela aquarela me doía tanto. Porque abadona- lá me doía tanto.

Fazia poucas semanas que havia aceitado o emprego no quiosque da avenida. As pessoas sempre disseram que a região era perigosa, algo que nunca reparará até começar a ter pesadelos com o lugar. Pintar era minha fuga dos sonhos tenebrosos, então qual não foi minha surpresa ao juntar os quadros que havia feito nas últimas semanas e perceber que o local estava em todos eles, consumindo todo meu ser. Minhas pinturas retratavam uma violência que jamais pensei em ver: corpos brigando por espaço entre os carros e si mesmos, mortes por esfaqueamento, roubos, fome, desespero. Reparei que nenhuma das imagens retratava gênero, pois ali os limites das bases sociais haviam sido deixados de lado por vícios muito mais profundos. Eram apenas corpos uns sobre os outros buscando a felicidade momentânea e ilusória, pinturas fotorrealistas que expressavam a dor e o abandono, os "Desumanizados pela Sociedade".

Por muitas vezes me perguntava o antes daquelas pessoas, e dos novos que constantemente surgiam. Imaginava engenheiros, padeiros, professores e até filhinhos de papai, consumidos pela desilusão com o mundo. Para mim, apesar das impossibilidades, ela era modelo. Seu rosto angular perfeito de perfil, os lábios carnudos de um tom marrom chocolate, a pele lisa como seda e um rosto marcado pela provocação; pose de alguém que nunca deixou de lutar, de manter a cabeça erguida, mesmo após ser consumida pelo mundo. Quando a desenhava, tentava afastá-la  da realidade na qual vivia, mas de algum modo a profundidade dos seus olhos era transportada para arte, marcada como um palimpsesto que não importa o quanto se lixe sempre deixa traços. Demorei algum tempo para entender que a dor não pode ser modificada.

Eu era garçom, quando não era estudante de artes cênicas, servindo mesas de pessoas que fingiam ser iguais a mim tanto quanto eu fingia ser igual a elas. Percebia os olhares, pois, para eles, alguém como eu sequer devia tocar seus talheres. Exigiam que eu fosse descartado tanto quanto ela, invisível por detrás das jarras de suco e da comida cara. Vinham ao fim da noite com roupas pesadas para se proteger do frio, julgando com superioridade a marginalidade no entorno, que se entregava ao vício em álcool, talvez a única coisa desse a falsa impressão de proteção contra a madrugada de temperatura gelida. Amanhã era de saber geral que algum dos desprovidos apareceria morto em um acostamento por hipotermia. Se tornaria a manchete de um jornal, que eles leriam e diriam "Coitado. Quanto sofrimento". Mas agora, bundas coladas nas cadeiras, queixos erguidos, desdém, cartões de crédito na mão, jóias mais caras que uma cesta de mercado. Um retrato da "Hipocrisia", como uma obra realista da segunda metade do século XIX.

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