Veio de uma vez. Sem sequer tempo para o raciocínio. Corri para o banheiro com uma mão na boca e a outra sobre a barriga. Não era a primeira vez que acontecia, mas, agora, o impulso de vomitar veio de verdade, não se mantinha mais apenas na agonia dentro do estômago.
Chegar à pia enviou um sinal adiantado para o meu corpo, sem qualquer controle sobre ele, vomitei ali mesmo.
Tinha um gosto estranho. Tinha uma cor estranha.
Parei assim que pude e me ajoelhei em frente ao vaso sanitário. Mais vômito. Azul escuro havia se tornado uma das minhas cores favoritas há algum tempo, mas vê-lo saindo de mim de forma tão nojenta e grosseira me fazia apenas ter mais ânsia.
Não havia comido nada de tão extraordinário, apenas o comum. A dieta que comecei semanas atrás não me permitia cores além daquelas que o arroz, feijão, carnes, saladas e frutas poderiam me oferecer. Um azul tão vivo assim não estava na minha lista.
Quando enfim pareceu que tudo o que eu tinha ingerido já havia sido jogado fora me desafiei a encarar aquela bizarrice antes que eu desse descarga, na busca talvez de encontrar alguma pista do que poderia ter causado a coloração estranha.
Encontrei então uma asa. Um azul tão intenso quanto o resto, com uma faixa preta em sua extremidade. Era uma asa de borboleta. Eu a conhecia. Senti-a voar em minha barriga há algumas semanas, pouco antes da dieta. Um sorriso quase fúnebre se encaixou em meus lábios. O nojo havia dado o lugar para outro sentimento, uma mistura de sentimentos para ser mais exata. Apenas o azul despertava em mim tal tipo de coisa.
Procurei por mais asas e lá estavam elas. A primeira asa fora a única encontrada inteira. Algo em mim dizia que fora a última a nascer, talvez por isso ainda não estava tão despedaçada quanto o resto. Provavelmente surgira da promessa de mudança. A última promessa feita. O último frio na barriga causado por ela e pelas outras borboletas.
Me esforcei em acreditar na promessa até depois de descobrir que ela era apenas mais uma mentira. Não houve mudança, nem sequer tentativa. Ainda não tinha forças de ir embora, então, continuei alimentando as borboletas com cada migalha que encontrava pelo chão ou por cima dos moveis.
Ao menos, depois de tantos dias de desconforto e dor, finalmente havia tirado de mim o que havia me adoecido. Percebi então, que não se tratava apenas das borboletas. Ia muito além daquilo.
Encarei mais uma vez o conteúdo dentro do vaso. Precisava olhar mais uma vez. Aquilo me mostrava que eu estava me curando. Estava jogando para fora de mim todos aqueles sintomas que me intoxicaram por tanto tempo. Eu estava finalmente me libertando.
Bem, é claro que ninguém havia me preparado para algo tão físico, esperava apenas sintomas emocionais, mas talvez, estava fadada a uma recuperação tão visceral quanto o romance que a havia causado. Talvez fosse também um castigo por deixar que ela implantasse em mim suas lagartas manhosas e deixasse tão facilmente que comessem minhas flores e destruíssem meu jardim.
Dei descarga sem oração em nome das pobres falecidas. Liguei a torneira e deixei que a parte que sujara a pia descesse pelo ralo. Limpei com desinfetante, um rosa. Ao terminar de limpar tudo e lavar a boca andei pela casa, andei pelo mesmo caminho que usei para chegar ao banheiro, em busca de água para recuperar os líquidos perdidos.
Percebi que azul não se encontrava apenas no vômito. Estava por toda minha casa, como se fossem eastereggs. Detalhes pequenos que foram se acumulando com o tempo. Fiz uma anotação mental desses objetos, hoje mesmo os trocaria. Já estava farta de tanto azul.
Mais tarde, ao entrar em lojas de decoração, reparei que uma nova cor se destacava em meus olhos: rosa. Rosa no mesmo tom do desinfetante. Nunca havia parado para reparar nessa cor, mas algo nela me confortava. Troquei então o azul escuro pelo rosa e fiz dela um tipo de remédio. Enquanto pagava me fiz uma promessa, uma promessa de verdade, deixaria o azul de lado até que ele parasse de ser tão visível para mim. Ou pelo menos até o rosa se sobrepor.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Borboletas
Short StoryBorboletas são sempre o prelúdio do romance, o início de uma paixão, responsáveis pelo frio em nossas barrigas e pela promessa de felicidade. Mas o que acontece quando a paixão acaba? Para onde vão as borboletas? Como ficam aqueles que a serviam de...