Como quando o anjo caiu

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Humanos facilitam muito o trabalho infernal.

O humano grunhe alto sob Martín, que cavalga com vigor, salivando com a sensação de absorver a energia do homem subjugado. 

Com o papelzinho fechado na mão, foi voando no céu noturno atrás do cheiro que sentiu no bar, até a janela do apartamento dele, que foi aberta sem dificuldades, pois nenhuma fechadura mundana prende seres sobrenaturais, tudo enquanto o coitado dormia.

Ele acordou o homem com delicadeza, liberando feromônios e acariciando seu rosto com o disfarce humano, sem as garras.
 
Quando conseguiu o que queria, fazendo com que o homem o puxasse para si, extasiado, exibiu sua aparência verdadeira, vermelha, monstruosa e quente. Ele se apavorou quando viu o que estava acontecendo, mas não resistiu à força demoníaca e luxuriosa que cerca o leito.

A satisfação que um homem comum tem ao transar com um íncubo é ridiculamente difícil de processar, tanto para o corpo e mente, como para a alma corrompida pelo além, e o sujeito não tem culpa alguma. Mas Martín bebeu e bebeu para se distrair ao voar, esquecendo a maldade que iria fazer, não por ter invadido propriedade, pois íncubos não roubam, e tudo o que ele faz é da vontade do outro, que realmente o puxou para cima de si. Enquanto sente as mãos humanas segurarem seus quadris com força e seu próprio corpo inebriado, agoniado para gozar, não está com cabeça para pensar nisso, apenas para estimular onde arrepia até o último fio de cabelo.

Mas o humano acaba terminando primeiro, dentro de Martín e com uma aparência de quem foi atropelado por um trem de carga. A sensação é de estar completo, de encaixar uma peça faltante, de comer algo depois de muito tempo de fome, coisa que estava mesmo acontecendo; se um demônio não goza antes da vítima, o faz logo depois, por pura liberação ao sentir a energia vital correndo pelos corpos profanos, e Martín goza tal qual um humano.

Suado e grudento pelas reações naturais do corpo, sai de cima do outro, admirando o sorrisinho do mesmo, que tem os olhos meio pesados por conta da dissipação do poder. Martín vê que não há nada que possa denunciar sua estadia ali, exceto, claro, o fato de que ele irá acordar nu, apesar de ter dormido de cueca e uma bermuda de time.

Um torcedor vai acordar para trabalhar como se não tivesse dormido nada em pouco tempo, já que são cinco da manhã, segundo o relógio perto da porta, que dá para o resto do apartamento, e, um pouco à frente, para a porta que leva ao corredor com um elevador ao fundo.

Martín pega o papelzinho que havia deixado entre a madeira da cama e o colchão e faz o trajeto até o elevador, sem se disfarçar, pois não sente nenhuma alma lá fora. Ao chamar a máquina, que em nada se parece com o elevador principal do Inferno, entra e aperta o número seis três vezes antes de sussurrar.

— Sicut cum angelus cecidit, me quoque incidere.

O elevador desce, apesar do número apertado ser alto. Ele desce, desce e desce e vai se transformando. Muda para dourado e com botões sem número, dispostos na vertical. Martín aperta o que corresponde ao Anel da Luxúria. É estranho ver o elevador totalmente vazio, parado no meio do nada, já que a maior parte dos demônios está dormindo nessas horas. Apenas súcubos e íncubos trabalham das nove da noite até às seis da manhã, um fato que sempre deixa todos curiosos é que as horas no Inferno são semelhantes às do mundo humano, apesar de não haver sol, apenas uma iluminação etérea levemente opressiva, e todos os Anéis passam pelos mesmos horários ao mesmo tempo pela falta de rotação.

Martín tem uma hora para chegar no prédio da Empresa Estatal da Sétima Subdivisão, colocar os nomes no sistema do computador, marcar os descartados, resolver seus rolos e ir dormir. Vai voando, sentido o calor no couro das asas e torcendo para não encontrar ninguém enquanto o efeito da bebida passa.

A luz rosada ainda está fraca, mas os cães infernais, que trabalham de guardas para evitar possíveis problemas enquanto esse é o único Anel adormecido, já estão de plantão nas calçadas, comendo carne e rosnando para um poltergeist que tenta roubar as coisas e jogar latinhas nas janelas dos outros; foram eles que deram origem ao mito dos lobisomens, pois são bípedes e levemente humanóides, apesar de possuírem um disfarce e atacarem com os dentes. A entrada da frente é ladeada por vasos com artemísias plantadas, e, dentro do prédio, há uma estranha sensação de frio por conta da coloração do piso, paredes e decorações.  

Faxineiras e zeladores andam de um lado para o outro, assim como os trabalhadores de tanga. 

Martín sobe as escadas até o terceiro andar, onde fica a sala ampla com mesas que mais lembram baias exclusivas com computador, organizadores de papel, canetas, uma gaveta com chave amaldiçoada e um espelho pequeno, pois a aparência externa é a principal fonte de poder de encanto.

O primeiro e o quarto homem que ele atacou na noite já completaram o número três, então, não devem mais ser usados. Os outros três são novos, logo, suas fichas com localização, idade aproximada, etnia, data, hora, comportamento, coordenadas seguidas e resistência ao ataque ficam em pastas diferentes.

Dar é muito burocrático.

Fecha os registros dos dois homens que não serão mais utilizados e manda para a Central, onde se faz a identificação coordenada para Asmodeus e para os nobres da linhagem Ghornisca. Os dos novos ficam em pastas separadas, juntos dos muitos outros que Martín nunca viu de novo. Como estão agora, após terem visto o lado mais leve das trevas? O único que o demônio consegue se recordar bem foi um tal de Panagiotis, vindo de um lugar de coordenadas muito distantes e com um sorriso arrasador. Mas, arrasou o coração do pobre íncubo, que voltou mais perdido do que já estava.

Continua digitando, e, ao acabar, anota apenas o essencial em um bloquinho que guarda dentro da gaveta e arranca as folhas diminutas para guardar em casa. Se for fazer algo, faça bem feito, pois nunca se sabe quando o sistema pode dar pane.

"Zombo a fé cega dos humanos, mas tenho uma muito pior dentro de mim", pensa enquanto desliga o computador e pega seus papéis do bloquinho e do número que recebeu.

— Seu arrombado, te procurei por um tempão!

Martín sorri ao reconhecer que a voz é de Catalina, que demonstra carinho xingando e insultando sem motivo aparente.

— Lina! Para onde te mandaram?

— Para um lugar lotado. Lotado mesmo, fiquei até perdida no meio dos cheiros, e ainda por cima encontrei alguém bom para eu assombrar.

Martín começa a rir, sem entender como ela pode ser tão perversa quanto as almas sofridas que ainda vagam pela terra.

— Pretende arranjar problemas, não é? Você já assombrou três otários desse jeito por meses, perdeu seu aumento e ainda quer fazer de novo — Diz, abanando a cabeça, ainda rindo.

— Meu bem, eu não procuro problemas, apenas sigo meus instintos. As consequências são apenas consequências para os meus atos.

— É foda. Bom, Lina, eu vou indo. Estou morto de sono — Para tentar compensar a súbita interrupção da conversa sem um motivo aparente para a outra, inventa: — Eu bebi aquilo que você mandou… e…

— Fica tranquilo — Catalina não sabe, mas mexe com a ponta da cauda sempre que fica nervosa ou não sabe o que fazer. E ela está fazendo exatamente isso. — Eu tenho que terminar o trabalho. Se cuida.

Martín sorri para ela e aperta as asas contra o corpo, se despedindo silenciosamente antes de se virar e sair, indo para casa.

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Nota da autora: mais um capítulo postado com sucesso, e eu estou bem empolgada com essa história!
Agradeço a todos que leram<3
Nos vemos em breve.

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