Capítulo 1

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— A paz forjada dos homens em breve verá seu fim.

Gael deu mais uma mordida no pedaço de carneiro em seu prato. Em seguida, tomou um pouco do ensopado. O velho na outra mesa continuava a falar, para ninguém, para todos, não sabia dizer ao certo. A estalagem lotada de soldados era barulhenta, mas ele conseguia ouvir a voz sofrida do velho sobressair às demais.

— Não vai demorar muito para contemplarmos com nossos próprios olhos a dura e pesada verdade a qual escolhemos enterrar! — Prosseguiu o velho, jogando as palavras para quem quisesse. –Nós nos sentamos em nosso precioso trono de soberba, acreditando ser os reis do Leste, mas não somos. Nunca fomos os mais poderosos e lançamos fora a benção da proteção antiga que nos guardava nesse mundo caótico. Agora, cegos e perdidos, seremos soterrados pelo poder do senhor do Leste, o senhor da sombra, o príncipe do caos, mestre da manipulação. E seremos entregues ao seu regime, como animais levados como oferenda. Mas eu vejo, com meus olhos velhos e cansados, uma fagulha de esperança, fulgurando longe, no horizonte, perto de se perder, mas perto de nos salvar. Se pelo menos nossos olhos se abrirem...

Um dos soldados, um homem grande e forte, com os cabelos grandes amarrados para trás, a barba suja de comida e a expressão de raiva, levantou-se e foi até o velho. Ninguém além dos seus amigos pareceu notá-lo, ninguém a não ser Gael, que comia sozinho, ouvindo atentamente as palavras da figura inusitada.

-Tão frágil e fingida paz ... –O velho continuava seu discurso, quando a mão pesada do soldado agarrou seu ombro com força. O homem magro e com aspecto acabado quase caiu com a pressão. Olhou para cima com olhar assustado.

-Escuta, velho insano, eu e meus amigos estamos tentando ter uma boa refeição ali para iniciar nosso dia. –Disse o soldado, apontando para a mesa onde outros três homens agora o encaravam. –E você com sua ladainha irritante não está nos deixando comer em paz. –Ele ergueu o homem pela roupa gasta, que se rasgou no ombro, exibindo o peitoral magro do velho. Nesse momento, mais pessoas já observavam a confusão.

-Perdoe-me, senhor soldado... –Balbuciou o velho. –Mas a verdade deve ser dita, antes que seja tarde... estava apenas fazendo meu papel, como você certamente faz o seu no exército. Perdoe-me, mais uma vez, por incomodar, mas... muitos aqui estão conversando alto, não vejo porque minhas palavras o incomodam tanto...

-Ah, você não vê. –Desdenhou o soldado. –Você não precisa ver nada, velho imundo. Nem deveria estar aqui! Seu lugar é no Sul, nas ruelas de Brasa Caída. Não sei quem o deixou perambular por aqui seu maluco, assim como não sei como o dono da estalagem o deixou entrar e ficar aqui gritando suas asneiras, mas não vou permitir esse absurdo de prosseguir. –Empurrou o homem para longe, que caiu no chão se esbarrando em outra mesa. Pratos caíram e quebraram, espalhando restos de comida no chão de pedra.

-Vamos, levante-se, velho, e vá embora.

Gael estava prestes a se levantar e interromper aquela insanidade, mas a garçonete, uma moça de cabelos castanhos, longos e um tanto bagunçados, com o rosto fino e corpo magro, a pele marcada por anos trabalhando debaixo do sol, sem descanso, protegida apenas por roupas velhas e surradas, se adiantou.

Ele já tinha visto aquela mulher trabalhando ali, uma ou duas vezes. Tinha uma vaga lembrança de já ter falado com ela. Na época, acreditou ser a filha do dono da estalagem, mas agora, vendo seu estado, devia ser uma sulista, que fora à Cidadela em busca de sustento.

-Por favor! –Pediu, colocando-se entre o soldado e o velho. –É um senhor de idade avançada e não está fazendo mal a ninguém aqui. Deixe-o em paz, senhor, eu imploro.

-Você implora? É mesmo? –Perguntou com desprezo o soldado. –Deveria implorar para esse verme sair daqui o quanto antes, para que minha paciência não se esgote de uma vez! Aposto que você quem o deixou entrar. Sua cara não nega. Veio de Brasa Caída também, não foi? Vocês são como insetos, não podemos vacilar que começam a querer se enfiar em lugares os quais não lhes cabem. Agradeça por ter esse trabalho, mulher, e preze por ele antes que o perca. Duvido que seu patrão vá aprovar você desafiando um soldado.

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