Capítulo I - A morta que habita os vivos

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A morta que habita os vivos. Esta é a história da minha mãe, e minha. Escrevê-la não foi uma decisão fácil ou tranquila. Aliás, não é possível descrever isso como uma escolha. É bem mais, ainda que guarde do gesto a urgência daquele que não pode parar no ar. E
engana-se o leitor se pensar que a dificuldade a que me refiro esteja relacionada à necessária transformação das ideias  e das memórias, através do chamamento, em letras, sílabas,
palavras, frases e... num quase eterno, pelo menos enquanto
dure, transe do pensamento.
O problema, a minha dificuldade, já que para a minha
mãe não há mais impedimento, é que falar dela, é, antes de
tudo e de todos, cavaquear sobre meu próprio eu. Ela vive
em mim com tamanha intensidade que é impossível contar
dela... sem que por seu meio, eu diga, ao final de contas, da
minha pessoa e do tanto que ela levou de mim.
Nada disso estava posto no princípio. Contrariando o  Evangelho, no início era a carne... e o verbo se fez em trânsito. Mesmo que hoje saiba que desde sempre estava me preparando para este momento, como se algo no meu espírito
me antecedesse e anunciasse, como um arauto, a chegada
daquela hora derradeira em que a história cumpre o papel de
enterrar morta, ainda que viva ela estivesse.
Não sendo versada em narração, fiz-me contadora de uma história que me continha, ainda que nunca me contivesse. Mas isso, como disse, apenas sei hoje. Lá, na origem, estava Ela e sua inimaginável capacidade de criar mundos possíveis, ainda que imaginários. Então, na realidade, na mais pura verdade, não sou eu quem conta, aqui, a história da minha
mãe. A impressão que tenho é que tudo isso foi tramado na
urdidura do tempo e na simplicidade dos afagos cotidianos,
como uma fábula que se conta em mim, como se o meu pró-
prio corpo, os meus gestos de escrever, ler, reler, reescrever,
cortar... e sucumbir, já lá estivesse antes mesmo que eu disso
tomasse ciência.
Também não pense o leitor que esse meu devaneio seja
uma espécie de justificativa ou de autocondescendência que,
ao arrepio da responsabilidade de quem toma a palavra e
doma o verbo, quisesse recusar ser a via por onde escoa o
texto, este texto, a sua história. Não, não, longe de mim tal
atitude. Não é nessas heranças que me fiz. O problema, acho
hoje, e achei sempre, é que eu não estava preparada para
isso. "Há que se preparar a casa para receber as visitas. E nunca se esqueça, a nossa casa é aquilo que nos habita", Ela dizia.
Custei a entender que, na verdade, as visitas, no caso, éramos
nós duas. E eu nunca estava preparada.
Ainda hoje, quando sei que há uma história por contar,
não me sinto preparada. Mas, não é possível mais adiar. Não
se trata, evidentemente, de uma urgência, algo entre a vida
e a morte, ou, como Ela gostava de dizer, "que a brevidade
do tempo faz a eternidade ficar sem jeito". A verdade, nua e
crua, é que hoje a água se espalhou e a massa corre o risco de
desandar. É preciso, pois, estancar a corredeira do tempo e
sustentar o fluxo da memória.
Tudo isso, assim, posto pode parecer uma banalidade.
É assim que vejo isso hoje. Tudo tem um ar de já sabido que,
às vezes, me envergonha. Como pude ignorar? Penso que estava eclipsada por uma nuvem de poeira do tempo e por um profundo desejo de enxergando não querer revelar. Contar
para quê? Para quem? Se no segredo inconteste das coisas guardadas a sete chaves residia um enorme medo de no instante que eu revelasse a promessa seria cumprida e Ela poderia descansar em paz?
Eu sei, parece puro egoísmo essa atitude de guardá-la só para mim. Mas não é, disso tenha a mais profunda convicção. Compartilhá-la não é um problema. O impedimento é anterior. Sei que está meio confuso, mas essa balbúrdia é mais devido à dificuldade de achar as palavras precisas do que pelo
embaralhamento das ideias.
Talvez se eu me reportar ao momento em que a necessidade de contar a história da minha mãe (e minha) fez-se imperativa, isso ajude a entender. No dia em que ela morreu,
passei o dia todo correndo de um lado para outro que nem
barata tonta para organizar tudo. Sorte a minha de contar
com a ajuda da Martinha e da Doralice para me ajudar. Porém, por mais que elas ajudassem, havia responsabilidades que eram intransferíveis não apenas do ponto de vista legal, e
estas são muitas, mas também do ponto de vista existencial.
Jamais imaginei ou me passou pela cabeça que qualquer outra pessoa que não fosse eu pudesse comprar o caixão DELA, por exemplo. De jeito nenhum! Jamais me perdoaria ou, se
assim o fosse, jamais o meu luto estaria completo.
Então depois das inúmeras providências para embalar a
morta e preparar um corpo apresentável aos vivos, de forma
que estes não tivessem repugnância da morte que os habita
e que estava, ali mesmo, estatelada num corpo inerte e sem
viço, a funerária cuidou para que minha mãe estivesse presente em sua última homenagem.
Correndo para um lado e para o outro, cansada e já sem
palavras para dizer daquilo que houvera – a morte – fui para a
cama já passava da meia noite. Dormir mesmo, foi muito mais
tarde. Na manhã seguinte, dispus-me a ficar numa pequena
cadeira lá do Parque da Colina e esperar a hora do enterro. Felizmente hoje já é bastante aceitável não fazer velório à noite. Também, de que adiantaria, pensei, se não há ninguém para
velar.


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⏰ Last updated: Jul 20, 2023 ⏰

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