Encontro Inesperado

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Kaiser adorava trabalhar na oficina. Era confortável estar no ambiente onde cresceu aprendendo com sua mãe a arte de dar vida e conservar as máquinas que moviam o mundo ao seu redor, a utilidade de cada mísera peça, a beleza presente até mesmo nos mais simples mecanismos. Tinha um prazer imenso em cuidar do lugar que seu pai abriu para mostrar o talento da esposa, acolhido pela atmosfera tão confortável e familiar, mesmo depois da partida deles para o interior.

E definitivamente não era o tipo de ofício que se tornava monótono com o passar dos anos. Sempre havia movimentação de clientes com demandas totalmente distintas, pessoas interessadas em consertos por motivos diversos, ou na compra de alguma peça necessária. Até nos momentos em que não havia muito o que fazer, Kaiser se ocupava trabalhando numa criação própria, principalmente os relógios de bolso e caixinhas de música.

Ou ao menos era o que fazia até o momento em que ele chegou.

Ainda se lembrava daquela noite, quando saíra para jogar o lixo fora. No beco onde ficavam as caçambas que recolhiam o material para as incineradoras e indústrias, uma silhueta humana sentada no chão e recostada na parede. Ao achegar-se, percebeu que era um homem, magro e ofegante em sua fraqueza. Seu braço e ombro esquerdos eram partes robóticas acopladas, porém estavam tão enferrujadas e amassadas que tinha certeza que seu dono não fazia manutenção há muito tempo. Os fios expostos e roídos deixavam claro que ele passara por maus bocados, assim como a ferida enorme que carregava na bochecha esquerda.

Um “pobre coitado”, como vários que vira durante a vida no bairro onde cresceu.

De início ficou um tanto ansioso e hesitante, afinal não era incomum que assaltantes e bandidos usassem da condição em que estavam para se aproveitar da bondade dos que tentavam ajudar para fugir da polícia ou até mesmo roubar. Sua mãe sempre orientou a ajudar sem abrir as portas de casa, principalmente a partir do momento em que passou a morar e cuidar sozinho da oficina. Cesar não era um lutador, não tinha porte físico para se defender num conflito corpo-a-corpo, definitivamente não deveria se arriscar.

Mas algo em seu interior sentiu que deveria ajudar, principalmente ao ver o brilho tão gentil dos olhos daquele rapaz.

Ah sim, era diferente, não parecia-se com o que costumava ver nos malandros da região. Aquele jovem parecia realmente necessitado, perdido, fragilizado ao extremo pelo que quer que lhe ocorrera. Não podia deixá-lo para trás, não daquele jeito. Acabou cedendo à voz de seu coração no fim das contas, e levou aquele jovem para a oficina, onde trataria das feridas e dos desgastes da melhor forma possível.

E assim Kaiser conheceu Joui, um jovem doce e gentil, membro de uma família riquíssima que acabou sendo mandado embora por seu pai ao escolher seguir como professor ao invés de seguir liderando o império da produção de armas dos Jouki. Cuidou das feridas de um rapaz que tentava ao máximo engolir a dor, não querendo incomodar mais o homem que lhe cedeu um teto sem a obrigação disso. Criou intimidade com o dono de sorrisos genuínos, que enxergava o lado bom até mesmo nos piores momentos, e tentava ao máximo ajudar como podia para pagar por tudo o que recebeu.

Desde aquela noite, seus dias mudaram. Não que a rotina fosse diferente, não era. Continuava acordando cedo, atendendo os clientes e criando seus próprios mecanismos no espaço que tinha. Ainda precisava dar uma afastada em esquisitões que queriam extorquí-lo, e afastar a polícia dos negócios mais questionáveis.

Mas, diferente de antes, Cesar tinha uma companhia. Agora não era mais o “garoto quietão da oficina”, tinha ao seu lado “o cara da bochecha estourada”! Seus dias não eram mais o silêncio total de vozes, os sons do trabalho passaram a ter o contraponto das conversas ininterruptas, as quais mergulhavam fundo em centenas de assuntos que se cruzavam sem parar. A casa não era mais a bagunça de peças (era sim um pouco desorganizado, tinha que admitir), agora era um ambiente que até possibilitou que tivessem um vasinho de violetas.
Seus pais ainda achavam estranho ter acolhido um estranho daquela forma, e Kaiser concordava, realmente era. Por mais que Joui fosse uma pessoa maravilhosa, não era como se o conhecesse antes de levá-lo para sua casa, estava dando um tiro no escuro ao acolhê-lo. Foi arriscado, mesmo que ele estivesse debilitado de verdade, afinal não sabia a história dele ou as intenções.

Sinceramente, não sabia dizer o motivo, só que o coração foi o que convenceu-o a ajudar com tanto envolvimento. Algo em seu interior se comoveu com o olhar dele, numa conexão quase sobrenatural que o levou diretamente à alma de Jouki. Quase conseguiu enxergar-se nele, por mais que nunca tivesse passado por tal abandono na vida, teve a sorte de ter pais que o amavam e protegiam a todo o custo.

Falando a boa verdade, Cesar não conseguiria deixá-lo ali, não tendo a certeza de que ele precisava mesmo de seu auxílio. Se conseguisse, ficaria a culpa e o remorso de não ter estendido a mão naquele momento, ainda mais se Joui tivesse morrido (e muito provavelmente teria, visto que estava muito fraco, doente e sem nenhuma manutenção nas partes mecânicas do corpo).

Ainda bem, deu ouvidos ao sentimento tão distinto que o encheu ao se deparar com a imensidão castanha tão ferida, estendendo a mão e dando uma nova chance àquele que futuramente se tornaria seu melhor amigo. Não foi fácil, não foi simples, e muitas vezes duvidou se realmente tinha feito a escolha certa, principalmente nos momentos em que a saúde do jovem não parecia se reestabelecer da maneira que deveria.

Mas sim, fez a escolha certa, era assegurado disso todos os dias. O sorriso brilhante que o saudava de manhã, o abraço quente e acolhedor, os olhos curiosos e os elogios que não eram economizados enquanto Cesar trabalhava em algum projeto, a preocupação com sua saúde (um tanto irônica para alguém que foi encontrado à beira da morte, mas tudo bem, não era como se tivesse uma alimentação e uma rotina de sono boa o suficiente para reclamar), tudo isso configurava uma grande confirmação de que fez o certo ao salvar Joui.

Por mais que tivesse sido obrigado a criar noção de espaço para dividir a cama com o amigo, a comer e dormir em horários que não estava acostumado antes, a abrir mão da organização bagunçada, valeu demais a pena. Apesar de ter que lidar com as reclamações dele quando não dormia direito, ou quando dava preferência a comer os enlatados pelas beiradas enquanto trabalhava sem parar, era uma boa recompensa vê-lo muito mais tranquilo quando ia descansar de verdade ou comer uma refeição mais robusta.

Sua mãe até brincava que pareciam almas gêmeas. Tão diferentes e tão próximos, encaixando-se bem como Kaiser nunca imaginou que iria acontecer com qualquer pessoa. No início, achava que era uma besteira, só uma justificativa de um evento completamente inesperado.

Porém, com o passar do tempo, pareceu menos absurdo. Por algum motivo, com o desenvolver gradual de sua relação, até chegou a rir, pensando que seria engraçado se fossem. Quer dizer, na única vez que Cesar tomou uma decisão diferente, ser justamente com sua alma gêmea era interessante, um perfeito roteiro para um livro de romance, daqueles que seu pai tanto gostava.

Não sabia se era ou não, mas não era como se fosse mudar muita coisa, sinceramente. No fim do dia, continuaria feliz por ter tomado a decisão de acolher aquele rapaz desconhecido, sequer imaginando que criaria um carinho tão grande por ele. Continuaria igualmente agradecido todo santo dia por ter sido avisado por seu coração, por ter seguido aquela vozinha, por ter a companhia que nunca sonhou ter todo santo dia ao seu lado.

Kaiser adorava a oficina, adorava seu trabalho, e adorava criar suas próprias máquinas. Entretanto, com a chegada de Joui, se tornou perfeito, numa prova que tudo o que era bom poderia sempre se tornar melhor…

E que talvez almas gêmeas realmente existissem.

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⏰ Última atualização: Jul 21, 2023 ⏰

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