Esse sempre foi meu maior defeito.Enquanto as pessoas estavam atentas a si mesmas, eu olhava profundamente para cada uma delas. Observava como a senhora de chapéu rosa gostava de sorrir para o seu Romeu que vendia banana na esquina. Ou como a filha mais velha da dona Joana provocava o seu irmão mais novo quando ele falava uma palavra errada. Pequenas interações entre todos ao redor de mim chamavam minha atenção, o que resultava em nunca estar atenta a mim mesma. Por conta disso já havia caído diversas vezes, ou apenas tropeçado no meio da rua. Era uma vergonha, minha mãe dizia, que eu não pudesse nem mesmo me manter em meus próprios pés. Meu avô disse uma vez que pagar uma pessoa para me acompanhar estava começando a ser uma opção. Naquele dia eu ri, aquele senhorzinho amava fazer graça a custa dos outros, porém me fez notar esse detalhe em mim mesma. Meu defeito.
Suspirei, cansada de tanto andar. Estava a quase meia hora tentando chegar na escola que minha irmã estudava. Tínhamos o total de dezoito minutos de diferença de idade entre nós, mas mamãe disse que era melhor que ambas tivessem experiências diferentes, em lugares diferentes. Bem que essas experiências poderiam ser mais próximas uma da outra, andar todo dia até ali estava mudando o formato dos meus pés. Só que não havia outra maneira, já que sua escola era mais perto de casa do que a minha, o que facilitaria a vida do vô Paulo na hora de vir nos buscar.
O sol estava forte, em pleno meio dia, e, para minha sorte, havia esquecido o guarda-chuva em casa. Não tinha como me proteger dos raios solares queimando minha pele. Tentei acelerar meus passos, mas não queria testar minha sorte e este ser mais um daqueles dias em que iria dar de cara com o chão por não ter prestado atenção.
Uma leve brisa passou enquanto encarava o prédio em que gêmea se encontrava. Eram três andares, pintados de branco, mas sujos do tempo. Haviam alguns desenhos no muro de fora, grafites de crianças e mulheres brincando com livros, outro que parecia ser a paisagem do centro da cidade e mais um, que era uma explosão de cores, que acabava cobrindo parte do nome da escola. Era um instituto de educação particular. Graças a pensão generosa do nosso pai (meus agradecimentos especiais a juíza Isabela por isso), podíamos frequentar escolas de classe alta facilmente. Por mais que a aparência não fosse das melhores, nós sabíamos que a educação era. Não era por menos que haviam uma sala dedicada aos prêmios que os alunos recebiam. Cida tinha um dos seus expostos lá.
Balancei a cabeça, focando novamente no meu objetivo ali: esperar a bonita e aí esperar o vô Paulo. Ele viria andando de casa, apenas para voltar conosco. Ele se recusava a deixar as únicas netas andando sozinha em um horário onde nem os comerciantes permaneciam por ali. E, sinceramente, eu era grata por isso. Nós sabíamos o que poderia acontecer, que existiam alternativas, possibilidades, de coisas acontecerem.
Passo pelo portão principal e ando até onde costumo sentar e esperar Cida. Os porteiros me conheciam, os professores nos confundiam e os colegas de classe dela fingiam que era só um espelho andando, já que nem me cumprimentavam. Respirei fundo, puxando munha garrafinha Tupperware para fora da mochila cor de folha de outono (insira aqui marrom). Tomo um gole da água notando que não era só minha pele que estava fervendo. Fiz uma careta para a temperatura quente e me levantei para pegar algo mais gelado para beber. Acenei para seu Tiago, porteiro do dia, e adentrei a escola mais a fundo. Havia um bebedor ali perto, um que não tinha gosto de cloro, nem cheiro de gato. Quando localizei, não demorei a encher minha garrafinha e aproveitar para, enfim, me hidratar de verdade.
Foi naquele instante que observei os alunos ao redor. Três meninas, talvez um ano mais novas que eu, passaram cochichando e rindo. Uma delas jogou a cabeça para trás, rindo alto que nem uma hiena, enquanto as outras duas pediam pra ela se acalmar. Tive vontade rir ali, pois a alegria das alunos do nono ano parecia melhor que a de alguém que já estava no ensino médio. Uma pontada de inveja surgiu, mas deixei passar. Tinha minhas amizades também. Por mais que sempre achasse que eles não gostassem de mim e faziam fofocas pelas minhas costas, não conseguia me afastar. Talvez esse fosse um evento corriqueiro na vida de toda garota sendo preparada para se transformar em uma mulher. Como uma pequena lagarta sendo jogada fora precocemente do casulo de forma totalmente agressiva, pois esse era o ciclo da vida.
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O Único Defeito - One Shot
RandomO Único Defeito - One Shot Com o passar dos anos, nossa protagonista achava que era única diferente em sua própria personalidade específica. Nem mesmo sua irmã gêmea tinha sua capacidade de notar tantas coisas como ela podia. Até que ela notar que...