De tudo que eu pensei em fazer, essa com certeza era a mais improvável de todas. Eu sempre temi demais a dor, e sempre fui a pessoa moralista que dizia que infligir dor física não era a solução para dores psicológicas.E agora, consigo ouvir claramente o som do meu sangue escorrendo de meus pulsos e pingando no chão. Quanta hipocrisia, não é mesmo?
Todo ser humano possui uma trava mental para dor, e a minha sempre foi muito bem funcional. Dito isto, a primeira vez que pressionei uma lâmina em meu braço, apenas para sentir a sensação do metal encostando firmemente em minha pele, eu me senti em uma montanha russa de emoções.
Do horror à empolgação, do medo à desatenção. Eu viajei um universo inteiro em meus sentimentos, passando por tudo, exceto por compaixão. Afinal, nunca houve espaço para mim em meio à minha piedade.
Eu fechei meus olhos porque eu não quis crer que realmente estava fazendo aquilo. Eu sempre tive problemas com coisas permanentes, então minhas cicatrizes sempre foram algo que me causaram um certo desconforto.
Mais que isso, perceber que realmente poderia me cortar me deixou aflito. E à medida que eu pressionava, sentia uma descarga de adrenalina no meu corpo. Eu sabia que não iria me cortar naquele momento, mas a sensação da pressão me fez sentir… vivo, eu acho.
Tudo daí em diante se mostrou curioso. Eu havia conseguido deixar uma pequena ferida unicamente pressionando a lâmina em meu braço, e passei horas e horas encarando aquela nova aquisição do meu corpo.
O vermelho em meu pulso era o símbolo da minha contradição, um lembrete de onde e o tanto que havia me perdido. Algo nisso tudo era divertido, o ardor da minha pele ferida deixava minha mente mais nebulosa, e meus pensamentos permaneciam na mesma intensidade, mas de alguma forma eu sentia um pequeno descompasso de alívio.
Nela eu vi refletida toda minha história de vida até aquele momento, e percebi que em toda a minha construção, eu tive tudo para conseguir alcançar o topo do mundo, e ainda assim, era notável que eu carregava um peso enorme que me impedia de prosseguir. Eu era um fardo para mim mesmo.
E como eu poderia me livrar de mim? Naquele momento, na eternidade que correu naquele segundo, eu decidi que eu venceria tudo que estava me matando, tirando deles a única coisa que poderiam fazer. Afinal, minhas dores poderiam ter tudo que eu possuía, para saciarem sua vingança, mas eu nunca daria à elas o prazer de me ver implorar por sua generosidade.
E para cada uma delas, reformulei em minha mente o motivo de eu ainda não ter sucumbido. Cada pedaço de amor e carinho que recebi, todas os sonhos que meu eu da infância ainda não havia realizado, e tudo que eu tinha para oferecer que não havia destino ou função aparente, sendo, portanto, utilizado como meio de sobreviver me entregando a tudo e a todos fielmente.
E para cada questão pendente, eu destruía mais ainda minha trava mental. Usando o sangue que iria derramar de meu corpo para corroer os portões que me impedia de me ferir. Usaria o poder do meu maior inimigo, contra ele. Seria incrível.
E quando finalmente me cortei, as lágrimas rolaram desenfreadamente. Havia sido um corte profundo, e ainda assim não era por tal razão que eu chorava. Eu chorava porque não havia ninguém ali comigo. Ninguém para ver meu fim, ninguém para me ver agonizar e finalmente dar meu último suspiro.
Tudo que havia comigo naquele momento eram os meus sentimentos que eu tanto jurei destruir, formulando em essência uma única questão vital: Por que eu havia feito aquilo?
Que dor absurda era essa que me impedia de ser feliz? De onde tudo isso veio? Cada parte minha quebrada é fruto dos meus medos? Ou os meus medos são frutos de minha alma quebrada? Por que eu não consigo ser feliz? Por que dói tanto existir?
Ninguém nunca vai ser capaz de entender, ou mesmo deveria, afinal de contas, é minha dor… Mas, Senhor, como eu queria que alguém me desse um rumo, uma resposta do porque eu ainda estou aqui e por qual razão eu deveria continuar.
Eu sei que uma parte de mim seria brilhante em alguma coisa, mas eu não tenho mais como esperar. Estou adiantando um processo de anos, que seria demorado e doloroso de ver. Com um corte, meu eu do presente resolveu o que meu eu do futuro levaria anos para conseguir lidar.
E aí, lembrei de como eu havia fugido da dor diversas vezes escrevendo, e que eu temia que o mundo inteiro não fosse grande o suficiente para conter as palavras que eu precisava expressar para me curar. Era um pensamento arrogante, ingênuo e ao mesmo tempo patético. Mas era o meu final, e eu podia ser o que quisesse, até mesmo a criança que jurou que viveria uma vida feliz.
E por tudo que testifiquei como forma de explicar o que eu sentia, percebi que eram totalmente insignificantes perto de qualquer gota de sangue do meu corpo. Aquele era o momento devido, aquela era minha obra final, a expressão máxima do meu eu. Uma forma de gritar para todos: Eu estou machucado!
No fim, minha morte também é uma tentativa desesperada de atenção, de todos a quem eu culpo pelo meu fim, ainda que eu não seja capaz de mencionar um nome sequer. Talvez eu tenha passado tanto tempo culpando pessoas que eu achei que poderiam resolver, que me perdi na ideia de lidar eu mesmo com minhas guerras. É literalmente uma batalha sangrenta que ninguém precisa ver.
E talvez, sempre tenha sido sobre isso, sobre o que todo mundo vai achar. No fim, há chance de todos acharem que eu fui egoísta por fazer isso, mas é até cômico. Todos tem um pedaço de mim, de minhas máscaras e de meus sentimentos. Talvez se eu fosse realmente egoísta, eu não estaria chorando com medo da morte agora.
E agora, eu sequer sei do que tudo isso se trata. Não sei é sobre amar, sobre viver, sobre saber viver ou qualquer outra questão nesse sentido. Talvez seja sobre ódio, eu me odeio demais para viver, ou simplesmente não vejo propósito. Que criança insuportável eu me tornei.
Com minhas últimas forças, encarei a lâmina ensanguentada que jazia fria no chão, maculada por sangue…
O meu sangue, meu último texto escrito de maneira amarga, para ilustrar meu doce fim.
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Tudo o que eu queria viver
Historia CortaSão apenas sentimentos que não podem ficar em meu bloco de notas, já que lá só são permitidos os amores e horrores de minha alma. Aqui, quero expressar o que um outro ser em mim quer sangrar, não necessariamente a realidade que vivo, mas emoções e...