Gritos de silencio

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-A gente pode conversar?
- tá tudo bem?
-Não tenho certeza, você conseguiu conversar com a Thais ontem?
- acho que sim, normal, na verdade não sei, eu acabei ficando mais tempo no computador resolvendo as coisas daquele cliente grande
- eu acho que ela não está bem, e eu não sei como explicar, mas tem alguma coisa errada.
- você acha que é por conta do bebe? porque tá perto do parto?
- Pode ser, pode ser medo, pode ser tanta coisa. Eu to com medo
- eu sei, acho que todas nós. Mas a gente se tem, vai dar tudo certo.
- Eu fico pensando se fomos egoísta, Sara.
- eu também penso nisso. Na verdade o tempo todo. Mas que outra opção a gente tinha.
- Sara, a gente podia adotar.
-Eu sei, eu sei. Mas não decidimos sozinhas, fomos as três, pensamos, tivemos médicos, todos os médicos. E também não era justo impedir ela, ainda mais por uma questão dessas.
-vocês me impediram.
-Luiza, não acho que seja um caso que dê para comparar. Você sabe que o risco era muito mais alto.
- tá, tanto faz. Você pode tentar falar com ela? Não quero que ela se afaste mais, e eu já to pegando muito no pé por tudo.

A gente sabia que a gravidez era um risco, tanto para Luiza quanto para Thais, mas no caso da Luiza era algo muito mais incontrolável. Ela tem uma síndrome rara, a Síndrome de Von Willebrand e nessas condições gerar um bebe poderia ser fatal. E apesar do quadro emocional delicado da Thaís desde que o pai dela faleceu, com a ajuda dos nossos médicos, decidimos que seria a decisão mais segura. A Thais iniciou o desmame gradativo de todos os remédios, sempre com supervisão, e passamos a fazer terapias ocupacionais em família. Mudamos totalmente nossos hábitos, desde lugares, até alimentação. Não era justo só a Thais se dedicar a esse processo, era o nosso bebe, o nosso sonho. Todas nós estaríamos juntas, e é óbvio que se eu ou a Luiza pudesse a gente estaria ali com mais do que só apoio, companheirismo, a gente geraria junto.

Mas a verdade, é que por mais apoio que a gente dê, só a Thais está carregando, só ela está com o corpo sendo bombardeado de hormônios e mudanças que a gente nunca vai fazer ideia. E todos os dias eu me pergunto se a gente fez a escolha certa. Não pelo nosso bebe, a gente ama nosso filho e não se arrepende. Mas pela forma que escolhemos receber ele em nossas vidas. Me pergunto se a vontade de ver os olhos da Luiza em um bebe, ou saber que a Thais seria a grávida mais bonita do mundo não deixou a gente completamente cega pro que realmente importa.
Vamos amar o nosso filho seja ele como for, não importa com quem ele se parece, pra qual time ele torce, qual camiseta escolher usar. Ele é fruto do nosso amor, e vai ser e receber amor. O que eu não aguentaria é saber que a nossa decisão destruiu a Thais. Ainda mais porque talvez, ela possa nunca nos contar.

-oi, posso sentar aqui?
-se você conseguir
-é, você tá ocupando todo o espaço mesmo, seu sonho de ficar com a cama só pra você nunca esteve tão perto de se realizar
-boba.
- te amo
-eu tambem, e tambem te conheço, pode falar. Mas mexe no meu pé enquanto fala?
-tá, mas olha pra mim?
- o que a Luiza te disse?
- ela tá preocupada
- ela sempre tá, você sabe
- eu sei, eu sei. Mas acho que dessa vez não foi exagero. Tá acontecendo alguma coisa?

Nem a gravidez fez a Thais ficar chorona, mas naquele momento ela só chorou. Não tentou se manter firme como sempre, nem relutar. Aqueles olhos que eu sempre encarava só pra perder o desafio estavam com a guarda baixa, ela não sabia pedir por ajuda, nem eles. Mas até mesmo eu que não era tão boa com sinais pude entender que aquilo era um pedido de socorro.

-A gente pode ligar pra Luiza?
- uhun..
-estamos aqui, tá? Eu prometo!

Não demorou muito pra Luiza estar em casa, ela entrou calma, mas não fazia diferença tentar disfarçar com uma entrada sutil e um comportamento tranquilo. Luiza, que sempre foi branca feito um papel, estava vermelha quase roxa, de quem chorou o caminho todo e tentou se controlar para disfarçar quando chegasse aqui. O nariz estava mais inchado do que o da Thais que estava gestando, o olho não estava marejado, mas completamente vermelho e machucado. Unha ela já não tinha mais uma inteira, e vi pela câmera que ela passou 30 minutos no estacionamento, dentro do carro.

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