Entrada no diário do Príncipe #1

4 1 0
                                    

Ponto de Vista do Príncipe: 

Foi em 1974 que Portugal, meu velho Mestre, me libertou. Foi em 1974, que o meu país, São Tomé e Príncipe viu a liberdade. Porém, sinto que a rutura foi súbita. Ele não se limitou a sair. Ele desapareceu. Levou tudo com ele. Parece que queria apagar tudo. Porquê? É vingança por me ter libertado? É vergonha por me ter escravizado? Porquê que o meu Mestre desapareceu. Hoje é 2023, e eu, Príncipe - como assim sou conhecido e portador da Alma de São Tomé e Príncipe, irei à procurar, não só a Alma de Portugal mas, também do seu portador. 

"Não se tem registo de ocupação humana nas ilhas de São Tomé e Príncipe anterior a 1470, sendo que as marcações históricas dão aos portugueses João de Santarém e Pêro Escobar o título de descobridores das Ilhas. Os navegadores portugueses exploraram as ilhas e decidiram que seriam boas localizações para as bases de comercialização com o continente." Pelo menos, é isso que dizem por aí. Então, se fomos por essa lógica, então aquela alma portuguesa não sou me colonizou... como também poderia ser considerada como meu pai.

A atração de colonos mostrou-se difícil, sendo assim, a maioria dos primeiros habitantes foram "indesejáveis" enviados de Portugal, a maioria judeus." Quer dizer... que eu foi sempre indesejado?

Em 12 de julho de 1975 é assinado em São Tomé um Acordo geral de cooperação e amizade." Este acordo foi assinado com Portugal... TRETAS!!! Que eu saiba que isso é assinado com as almas presentes, coisa que não aconteceu connosco! Ou pelo menos, não aconteceu com a minha alma e o seu portador da altura. E escusam de vir com a desculpa da ditadura, porque Portugal viu-se livre dela em 1974. Na verdade, acordos como este aconteceram sem a alma portuguesa estivesse presente... Ele odeia-nos agora, não é?

E sabes o que dói mais? Eu não sinto rancor, ou odio, ou sentimentos de neocolonizado, termo que a Angola gosta muito de usar para ver se consegue atrair a atenção do meu velho Mestre. Apenas... sinto tristeza. Tive a sorte de não ser mais "um brinquedo" no jogo politico da União Soviética e dos USA. No entanto, isso não remove nem uma gota da tristeza que sinto todos os dias. Ou que a minha alma sente.



Príncipe parou de escrever. Ele ouve os país a falar por um pouco. Encara uma fotografia dos pais e dos seu avós. Ele volta a escrever.


A minha família... tem uma crença estupida. Dizem que, a alma que nos colonizou acabará por volta. Quando Portugal saiu, os meus avós, em conjunto com os meus país, costumavam ir esperar a alma ou, ao porto de desembarque, ou ao aeroporto. Sempre disseram que a alma acabaria por regressar. Mas, nunca voltou. Hoje, os meus país trabalham para sobreviver e eu estou prestes a acabar a escola. Mas... por vezes, espero no aeroporto ou nos portos. Penso que a tradição passou para mim.

Muitos já me disseram para desistir. Que é inútil esperar por ele. Que ele ou a Europa não querem saber de nós para nada. Eu não respondo a isso. Não são eles que estão a segurar esta alma. Sou eu. E só eu que sei o que sinto. Mas, o mais engraçado, é eles gritarem que odeiam a Europa mas, é exactamente para onde querem fugir. O cheiro a hipocrisia que até tenho que abrir a janela para arejar o meu quarto.


Príncipe abre a janela do seu quarto.

- Demónios! Parece que o Verão da Europa chegou aqui às minha ilhas. Que treta! Parece que vou ter mesmo que ligar a ventoinha ou morro de calor.

Assim que acabou de abrir a janela, sentou-se a escrever novamente.


Hoje tive a ler um pouco acerca minha história. Já sei que comecei como um arquipélago ausente de pessoas. Que foram os navegadores portugueses que me deram vida. Navegadores... Não havia aviões nessa altura. Era por mar que eles chegaram. Será... será que o mar os pode trazer de volta? Será que mar poderá trazer Portugal de volta?

Naquela altura, não havia GPS. Os navegadores tinham que se atirar ao mar e rezar pelo melhor. Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! Lembro-me de ouvir estes versos. Não me lembro do autor mas, consigo compreender o seu significado. Para que fosses nosso, ó mar! / Valeu a pena? Tudo vale a pena? / Se a alma não é pequena. 


A personagem faz uma pausa e a seguir gritou: 

- ENFRENTASTE O MAR MAS, NÃO ENFRENTAS A MIM?! A TUA ALMA É GRANDE PARA O MAR MAS NÃO É GRANDE PARA ME ENFRENTAR?!

Os pais dele perguntaram o que se passava. Ele disse que não era nada e que tudo estava bem. Ele esperou que os pais se afastassem para continuar a escrever.


"Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu." Eu não quero ser a tua reflexão mas, também não sou nenhum Cabo do Bojador. Mas gostaria, que o Cabo da Boa Esperança nos guiasse.

Ok. Chega de me destruir emocionalmente. E também chega de ler livros acerca da minha história e a de Portugal por uns tempos. Quanto mais livros eu abro, mais desesperado por um desfecho fico. Sinto-me como se estivesse numa história infinita. Os mais perversos gostam de dizer que estou a negar o meu próprio clímax. Eu não chamaria isto uma masturbação mas, garanto a todos os Deuses que ficaria para além da porra do paraíso se eu pudesse voltar a pôr os meus olhos naquela maldita alma portuguesa.

Só para acabar, porque já não posso ver este diário à minha frente. Sabes qual é a coisa mais patética? Muitas pessoas, até a minha própria família já disse, "Se queres vê-lo, então porquê que não vais até Portugal?" Primeira desculpa, não tenho dinheiro. A resposta deles: "Nós arranjamos-te dinheiro" Segunda desculpa, não tenho COLHÕES PARA O ENFRENTAR!! Perdão pela linguagem! Mas eu não tenho bolas para o enfrentar também.

Não quero dizer que quero que ele rasteje de volta para mim ou, que implore por perdão. Já é tarde demais para isso. No entanto, sinto que seria mais fácil se fosse ele a tomar a porra da iniciativa. Às vezes, penso o que aconteceria se fosse eu a ir lá. Será que tudo correria bem? Ele ignorar-me-ia? Ameaçar-me-ia? Eu não faço a mínima ideia como se chama aquela experiencia do gato na caixa envenenada porém, tenho muito medo de encontrar o gato morto. Tenho muito medo de olhar nos olhos dele e ver ódio. Se ele vir até a mim, pelo menos saberei que foi ele que quer falar. Agora se for lá eu... temo em ouvir as palavras: "Tu não és nada para mim já"

Por vezes, tenho pesadelos, ou é a minha alma que os tem, seja como for, são pesadelos pesados. Frases como "Tu não és nada mais do que um escravo", nunca te devia ter encontrado", "Desaparece", "Não voltes mais aqui", fazem eco na minha cabeça. Tenho medo. Muito medo.

Chega! É hora de fazer o jantar antes, que a minha mãe decida me cortar o rabo e servi-lo de jantar. 


E com isto, Príncipe fechou o diário.

O mestre e o príncipeOnde histórias criam vida. Descubra agora