Sinto minha pele queimando no asfalto antes mesmo da buzina do caminhão. Não consigo me mover, apenas ouço os gritos, a sirene na ambulância, diversas mãos me colocando em uma superfície fria e, de repente, silêncio. Um silêncio ensurdecedor e o escuro mais nítido que já vi.
Não sei ao certo, quanto tempo se passou, apenas acordei. Abri meus olhos ainda atordoado, sentindo como se todos os meus ossos estivessem quebrados. Dei um pulo, assustado, ao perceber que estava no sofá de casa, completamente intacto. Tentei me levantar, mas não obtive nenhum êxito. Apesar de não ter um arranhão sequer pelo corpo, não consigo me mover.
Passaram-se alguns segundos (ou horas, não sei dizer ao certo), até que ouço o barulho da maçaneta girando e a porta se abrindo lentamente. Vazio.
Esperei mais alguns minutos, olhando para o meu apartamento tão igual e tão diferente de como eu deixei, até que senti uma presença entrando. Não me virei para vê-la, mas reparei ao ver de canto de olho que era alta, usava uma capa e uma espécie de adaga em sua mão. Sua presença soava como o pingar de uma torneira mal fechada ou o frio do inverno quando não ligamos a lareira. A criatura fecha a porta atrás de si, apesar de parecer não se mover para fazer isso e vem até o sofá, sentando-se ao meu lado.
Contradizendo todos os meus instintos, a presença daquele ser trazia uma espécie de conforto pra mim. Ela corta o silêncio com um suspiro:
- Olá.
Sua voz é como uma melodia mórbida e suave. Respiro fundo.
- Olá...
Sinto um sorriso crescer em seu rosto enquanto a figura encapuzada fala.
- Eu sinto muito pelo ocorrido.
Finalmente me viro para olhar para a criatura. Não consigo ver seu rosto com exatidão, apenas aquele sorriso malicioso por baixo daquele capuz. Sua mãos são acinzentadas e parecem meio... translúcidas? Ela brinca com a adaga, girando-a em suas mãos.
- Ah, tudo bem, eu estou melhor do que esperava.
A presença sombria ri de leve e o silêncio avassalador retorna. Decidi me levantar e olhar pela janela do apartamento. Abro a cortina e... mais vazio. Merda.
Ainda olhando para o branco infindo através da minha janela, pergunto:
- Não estamos na minha casa, né?
A criatura respira fundo novamente. Parece cansada.
- Não. - a resposta curta me arrepia e eu espero até que ela complete a frase, mas ela não o faz.
- Onde estamos, então.
- No Umbral. Geralmente não é tão bonito quanto a sua casa, - ela ri como se fosse uma piada - mas como você está aqui por acaso, não está tão ruim.
Pondero por algum tempo sobre a situação e olho fixamente para o ser.
- Quanto tempo tenho aqui?
Ela olha para algum relógio imaginário em seu pulso.
- Algum.
Sorrio de leve e vou até a cozinha abrindo os armários e vendo que estão exatamente como eu os deixei.
- Quer café?--------------------------------------- // ----------------------------------------
Sento novamente no sofá e entrego a xícara para a criatura.
- Então... quem é você?
A figura dá um longo gole do seu café, deixando o silêncio quase se materializar no ambiente.
- Eu sou o equilíbrio. Sou o bem e o m... - Interrompo sua fala imediatamente.
- Não. Eu perguntei QUEM você é, não O QUE você é.
A coisa me encara por algum tempo e eu tento não estremecer.
- Galadriel.
Foi simples.
- Ah... eu sou o Dante.
- É, eu sei.
Nos entreolhamos e Galadriel diz:
- Apartamento legal.
Olho em volta e penso alto:
- Não é nada demais - tento não deixar o silêncio prevalecer novamente - Qual é a da capa?
- É pra não apaixonar os mortos - Galadriel gargalha como se eu tivesse contado uma piada hilária - brincadeira. Digamos que eu não tenho uma aparência muito... comum.
Assinto com a cabeça terminando meu café com um longo gole.
- Justo.
A coisa dá de ombros e não responde.
Rapidamente o vazio branco que aparecia na janela começa a escurecer e Galadriel se levanta, indo em direção a porta.
- Bom, já deu minha hora.
Ela abre a porta e eu a observo saindo lentamente. Antes de fechá-la, ela sorri.
- Não faça besteira lá em cima, criança.
Ela fecha a porta e novamente, escuro.Abro os olhos e tudo está branco. Ouço barulhos de televisão e olho para os lados. Tem comida em cima da cabeceira e minha mãe está dormindo na poltrona ao meu lado. Olho para frente e... na porta, tem um ser. Usa uma capa, mas agora, sem capuz. A criatura não tem rosto, é apenas uma fumaça. Ela acena com a mão e sai como uma elipse.
É, isso não é um adeus.Autoria: Theodor Dante Moura
PS: escrevi isso aqui numa aula qualquer, eu achei bom e postei aqui, é isso