Capítulo III

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Quando abro os olhos, sinto meu corpo menos exausto, nenhum pesadelo me atormentou essa madrugada, então ao menos terei paz só por hoje. Até no outono havia momentos em que a chuva dava uma trégua e hoje é um desses dias, ao encarar o céu pela entrada da tenda, ele completamente limpo e sem sinal de nuvens, nem parece que estamos na mesma estação.

Os outros dormiam tranquilamente, Yahto e Yhoki em suas próprias redes no canto esquerdo da tenda, Zhari à direita e eu como de costume, prefiro ficar mais próximo da porta, onde a luz me alcança no primeiro raiar do amanhecer por conveniência, afinal um lobo ter medo do escuro parece uma piada, não é?

Depois que ambos retornaram da viagem, a maioria do espaço voltou a ser ocupado com jarros, baús e pequenos armários contendo plantas, ervas e os mais variados materiais usados em rituais, eles passaram o resto da noite organizando tudo, nada mais justo eu sair cedo e pegar alguma coisa para eles comerem.

A terra abaixo dos meus pés estava fria, consequência da tempestade que demorou horas para acabar. Repito toda minha rotina do início ao fim, colocando um outro casaco sob os ombros já que o anterior foi direto pro lixo e saio à procura de comida.

Havia poças de lama espalhadas por todo chão da mata e embora eu não ligue de atolar o pé nelas, continuo sentindo nojo a cada passo que dou. Pelo caminho tinha galhos caídos, folhas e até alguns troncos quebrados ao meio, mudando drasticamente a paisagem. "E pensar que daqui algumas semanas isso tudo estará encoberto de neve, esse inverno definitivamente será rigoroso".

Indo em direção ao norte, nenhuma criatura deu as caras, nem mesmo os Cyoels saíram das suas tocas para beliscar a grama — Que azar, nem sequer um aperitivo.

Devo ter me afastado demais do bosque, as árvores ao meu redor pareciam meio mortas, como se tivessem sido deixadas num estado decrépito de propósito. "O caule está apodrecendo, as raízes cheias de mofo e o odor é meio estranho".

Dou meia volta naquele instante, entretanto um arrepio percorre meu corpo num piscar de olhos, minhas orelhas reagiram e se moveram por instinto, apontando para a esquerda, lentamente percebi a presença de feromônios espalhados no ambiente, esses tão azedos que me fazem passar mal só de inspirar pela primeira vez. "O cheiro de Wyllan é mais aceitável que isso, quem seria tão asqueroso a esse ponto?".

A floresta estava muda e pela dispersão do odor era impossível dizer exatamente a origem, só havia duas explicações, ou estou num território de matilha, ou…

Uma mão agarra meu pulso por trás, naquele instante a primeira coisa que faço é prender o fôlego, em seguida sou pressionado contra o tronco na minha frente, meu rosto começou a arder por conta do choque contra a madeira. — Quem ousa entrar na minha área?!

Após o baque, o lobo me vira e faz eu olhar diretamente para sua cara, devo dizer que era horrível, estava repleta de cicatrizes, inclusive uma delas cruzou um dos olhos, lhe tornando cinza enquanto outra ao lado passou reto, arrancando parte do cabelo, sua orelha esquerda foi praticamente destruída e alguns dentes faltavam na mandíbula.

Lobos solitários, eles abandonam a casta das matilhas e são obrigados a viver no ermo da mata, vulneráveis a doenças e condições extremas de modo que nem seus próprios corpos conseguem se recuperar direito, Yahto uma vez mencionou: "Lobos são seres sociáveis, se não tivermos companhia, enlouquecemos". Por isso o exílio é considerado a punição máxima para criminosos

— Me larga, agora! — Pressiono minha mão  contra o braço que me mantém preso, fincando as garras e fazendo ele sangrar, mas não teve efeito, só grunhidos e uma risada seca de quem está completamente desidratado.

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